A pandemia está à solta. Provavelmente, no momento em que o leitor tem este texto em mãos, o número de vítimas e casos registrados do coronavírus já dobrou desde o momento em que seu autor o escreveu. E não é à toa: o contágio pelo covid-19 segue um padrão de expansão exponencial: uma pessoa que infecta mais 4 e, essas quatro que infectam mais 4 cada um, terá atingido um total de 20 pessoas no final. E assim vai se espalhando. Por isso, é tão importante que a população siga as recomendações médicas e adote o isolamento como rotina nos próximos dias e a higienização como hábito para o cotidiano. Lavar as mãos é o mais importante para evitar o contágio viral. Mas logo surge a pergunta: e quem não tem sequer água em casa?
O Brasil é um país pobre, e isso já é sabido por todos. Mas o que parece ter sido esquecido há muito tempo pelas elites políticas brasileiras é que nem mesmo o básico o Estado brasileiro conseguiu garantir: faltam condições sanitárias decentes para metade do País. Leia-se: 100 milhões de brasileiros não têm coleta de esgoto. Isso é o equivalente a 1.270 estádios do Maracanã absolutamente lotados de pessoas que não têm acesso à rede de esgotos. E, agora, em meio à crise do coronavírus, são 31 milhões de brasileiros sem acesso a abastecimento de água da rede de distribuição. Como lavar as mãos, afinal, se a água não chega?
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As respostas para evitar a catástrofe diante da pandemia já estão fazendo-se presentes no debate público. Seja por meio de benefícios prestados às famílias mais pobres ou até mesmo alongamento no prazo de recolhimento de tributos, o socorro imediato deve chegar de alguma forma. A sociedade civil e a livre iniciativa também já se mobilizam em defesa das pessoas. Mas não podemos ignorar que as soluções para resolver esses problemas estruturais são de longo prazo e não vão solucionar o desafio do presente: se tudo for devidamente feito, poderemos resolver, aí sim, problemas similares no futuro.
Essas grandes pautas de longo prazo têm dezenas de desdobramentos cada. Mas, sem dúvida, o assunto prioritário a ser tratado é aquele que países do mundo desenvolvido resolveram há pelo menos um século atrás: o saneamento básico. É verdade que já se teve um grande avanço com a aprovação do novo Marco Legal do Saneamento na Câmara dos Deputados. Essa proposta busca maior participação do setor privado para cuidar de água e esgoto, uma vez que o Estado brasileiro provou-se totalmente incapaz de lidar com o assunto. Enquanto o Chile tem participação de 94% de empresas privadas de saneamento básico e cobertura de água e esgoto para 99,9% da população, o Brasil tem apenas 6% de empresas privadas e cobertura de 50% da população. Estatais brasileiras de saneamento não levam investimento: levam cabide de empregos para currais eleitorais.
Mas de nada adiantará trazer nova legislação para o saneamento básico se há um problema ainda maior e mais profundo permeando o país: a irregularidade das propriedades. Metade dos imóveis no Brasil – terrenos ou casas – não têm a devida documentação de registro. Ou seja, são imóveis onde, por exemplo, o cidadão não tem um CEP. É como se aquele terreno ou aquela casinha existissem na realidade, no mundo físico, mas não existissem juridicamente. E essas irregularidades têm consequências muito sérias.
+ André Bolini: Regularização fundiária – o choque de capital que o Brasil precisa
Por exemplo: um imóvel com registro de propriedade irregular não pode ser colocado como garantia para um empréstimo no banco. Consequentemente, o tomador de crédito terá menos dinheiro à sua disposição ou deverá pagar taxas de juros mais altas. Outro grande problema é a sucessão do imóvel: sem registro, aquela herança não tem proteção jurídica sólida para os herdeiros. Mas o mais importante é o seguinte: sem endereço, a companhia de água e esgoto não vai chegar na casa das pessoas. O saneamento básico no Brasil só será para todos os brasileiros quando o Poder Público abraçar a agenda de regularização fundiária. O buraco, afinal, é muito mais embaixo.
A crise do coronavírus certamente deixará uma grande lição: a agenda de cidadania básica não pode – de jeito nenhum – deixar as favelas e comunidades de lado. O Estado brasileiro passou muitos anos subsidiando grandes empresas e cobrando a conta dos mais pobres; financiando obras com recursos públicos em países como Venezuela e Cuba enquanto faltavam obras básicas de água e esgoto para metade dos brasileiros; transferindo renda dos mais pobres para os mais ricos, seja via BNDES, seja via aposentadorias e privilégios para a elite do funcionalismo público. Está na hora de falar de saneamento básico e regularização de propriedades nas favelas! E a hora é agora!