Minha tia Amália via fantasmas. Suas visões eram tão rotineiras, que eu me perguntava como ela suportava a nossa vidinha materialista do arroz com feijão tendo aquele dom de conjugar este mundo esmagado pela concretude com um astral ilimitado.
Titia morreu solteira, embora tivesse sido alvo do amor de um careca que puxava de uma perna, usava bengala e tinha um pecado mortal: era desquitado. Quando meus tios machistas e ciumentos a surpreenderam num banco de jardim de mãos dadas com o Agenor, foi um drama. Duvidaram de sua inocência, certamente abusada pelas óbvias más intenções do namorado e até mesmo sua virgindade — guardada, aliás, por mais de mais de meio século e com a qual penso que faleceu — foi motivo de preocupação.
Foi nesta ocasião freudiana que ela viu o espectro de sua mãe Jesuína (que havia morrido quando a filha era menina e substituída por uma madrasta dominadora) e muitas almas de homens simpáticos, parecidos com o Clark Gable, seu astro de cinema favorito, que a ela suplicavam Ave-Marias e Padres-Nossos que não custam nada a ninguém.
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Uma noite, quando displicentemente eu joguei minha calça curta e uma camisa em cima da cadeira no nosso quarto de dormir, ela advertiu: “Foi no meio de roupas assim largadas que minha mãe apareceu… Viraram a nuvem que desenhou o fantasma. Ele se aproximou de mim, deu-me um beijo na testa e sussurrou: ‘Eu te amo muito, minha filhinha’.”
Pela primeira vez na minha vida, me dei conta da imperiosa necessidade do amor que minha tia Amália jamais vivenciou. Nem do seu namorado banido, nem de nós, que dela apreendemos a lição que hoje afeta o desconcertado universo político-social brasileiro: o retorno do reprimido, a volta dos fantasmas, o retorno de atores que saíram do palco.
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Tia Amália foi interditada. Disciplinar impulsos, restabelecer a ordem é tão arriscado quanto operar o coração. Reformas fazem parte da democracia. Intervenções são um tabu para uma elite neofascista que se pensa — haja paciência! — como “aberta” e “socialista”. Intervenções podem fracassar ou serem comédias como foram as que sofreram a cidade do Rio de Janeiro de Sérgio Cabral filho e no desonesto regime lulopetista.
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A cidade do Rio de Janeiro tem um fantasma: o Estado do Rio de Janeiro que assombra a “Cidade Maravilhosa”. Nenhuma coletividade urbana foi tão denegrida como este Rio que, em 1960, deixou de ser capital do Império e da República para virar cidade-estado. E, em 1975, num gesto de vingança eleitoral, foi sem consulta pública e em pleno regime militar “fundida” ao Estado do Rio de Janeiro como mais uma capital, tendo a gloria de desbancar uma modesta Niterói.
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Esse é o pano de fundo da cidade que rumou para o descontrole e a intervenção. O ideal seria reformar. Mas como seguir a receita quando a cidade se descobre governada por bandidos que, ao longo de confrontos com a polícia, demonstram mais poder, mais inteligência (planejam absurdamente de dentro dos presídios!) e mais eficácia do que as forças da lei?
A latitude conquistada pelo crime foi tamanha que assaltos são televisionados, ultrapassando os limiares jamais discutidos, da esperteza e da malandragem, tão admirados e atribuídos à identidade “carioca”, conforme assinalo na minha obra.
O desequilíbrio entre ordem e desordem tem também outras causas. Como ordenar um país e uma cidade quando um ex-presidente é condenado, o governador do Rio de Janeiro está na cadeia para cumprir uma pena de cem anos, o presidente em exercício e vários ministros são indiciados? Se os “de cima” roubaram, e alguns só agora estão sendo presos — por que diabos eu vou seguir a dura senda da honestidade?
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É dentro desse oceano de ausências morais que se coloca a questão não somente de restabelecer a ordem, mas de descobrir os atores que — além de alguns juízes e promotores — vão assumir a tarefa de estabelecer limites, já que todos têm, como dizíamos sorrindo, “todos têm o rabo preso!”
Como encontrar os ilibados nesse rotineiro teatro de atores que são mocinhos em público, mas, com seus amigos e companheiros de partido e revolução, assaltam a República em particular? E, indo além, sequestram a ética por meio de um partido que prometia “não roubar e não deixar roubar”, mas que foi a agremiação capaz do maior assalto jamais registrado na economia do Brasil?
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É nestas circunstâncias que devemos considerar o retorno dos militares. Pois se a democracia exige tanto civilizar o capitalismo, quanto às desmedias ambições e abusos ideológicos ela não pode dispensar um segmento tão importante para a manutenção da ordem como o militar. Na difícil dinâmica democrática, cujo centro é a constante revisão de si mesma, ninguém pode ser antecipadamente demonizado. Nem todo militar é fascista, nem todo comunista é um comedor de criancinhas e nem todo esquerdista é imune a maracutaias. Sabemos como eles adoram prometer tudo para todos, fazer compadrios preferenciais com os ricos e colecionar terrenos e relógios de luxo.
PS: Essa crônica dedicada a Fernando Gabeira, a Rubem César Fernandes e a todos os exorcistas.
Fonte: “O Globo”, 07/03/2018