Sergio Moro traçou um plano para “criminalizar a política”. A senha de agitação, enunciada por Jaques Wagner, sintetiza um paralelo fabricado na usina de propaganda lulopetista. O paralelo assume como pressuposto que a Operação Mãos Limpas, conduzida na Itália, tenha provocado a ascensão de Silvio Berlusconi –e, por extrapolação, profetiza trajetória similar de um Brasil oficial abalado pela Lava Jato. A História serve aí, tipicamente, como muleta para a luta política: Berlusconi é o fantasminha camarada inventado para insuflar uma campanha contra Moro.
A extrapolação peca por impertinência. Mesmo se o pressuposto fosse verdadeiro, inexistiria motivo para acreditar que o Brasil seguirá o rumo da Itália, pois fenômenos históricos semelhantes tendem a produzir desdobramentos distintos, quando as circunstâncias são diferentes. Antes de tudo, porém, o pressuposto é falso: Berlusconi não resultou da Mãos Limpas, mas da interrupção dela. Nisso, precisamente, encontra-se uma lição para o Brasil.
Na Mãos Limpas, os juízes de Milão desvendaram as redes de corrupção estabelecidas entre políticos e empresários, que configuravam um sistema estável de intercâmbio de contratos públicos por subornos. O escândalo destruiu a ordem política vigente desde o final da Segunda Guerra Mundial. A Democracia-Cristã (DC), maior partido do país, perdeu metade de seus votos em 1992 e implodiu dois anos mais tarde. O Partido Socialista, fundado um século antes, desapareceu junto com a DC. Mas o ciclo de poder de Berlusconi, que se estendeu, com intervalos, de 1994 a 2011, derivou da derrota final da operação anticorrupção, bloqueada por um pacto tácito entre o próprio Berlusconi e o Partido Democrático da Esquerda (PDS), sucessor do Partido Comunista Italiano.
À frente de uma coalizão conservadora, Berlusconi venceu as eleições de março de 1994, mas seu gabinete caiu em dezembro, derrubado por revelações da Mãos Limpas. Nas eleições de abril de 1996, triunfou a coalizão liderada pelo PDS, que governou até 2000, por meio dos gabinetes de Romano Prodi e Massimo D’Alema. Naquela etapa decisiva, os governos de esquerda sabotaram as investigações judiciais que ameaçavam os negócios mafiosos de Berlusconi. Para proteger seus próprios corruptos, e sob o pretexto de evitar a “criminalização da política”, a maioria parlamentar passou leis meticulosamente destinadas a antecipar a prescrição de crimes e procrastinar julgamentos. O pacto de conveniência entre a esquerda e a direita travou a Mãos Limpas, anestesiou a sociedade e preparou a cena para a magra vitória de Berlusconi nas eleições de 2001.
A tese de que a Mãos Limpas conduziu à hegemonia de Berlusconi é tão falsa quanto a de que a revolução popular contra a ditadura de Hosni Mubarak, no Egito, em 2011, gerou a ditadura de Abdel al-Sisi, implantada em 2013. No segundo caso, sublima-se o fracasso do governo eleito da Irmandade Muçulmana; no primeiro, apaga-se a ofensiva contra a Mãos Limpas deflagrada pelo governo de esquerda. Num e no outro, a narrativa recortada e remontada serve à finalidade de oferecer um colchão intelectual de legitimidade aos que exercem o poder.
São, ademais, narrativas essencialmente conformistas. Os serviçais intelectuais de Al-Sisi tentam persuadir os egípcios de que o autoritarismo é um tributo aceitável, a ser pago em nome da ordem pública. Os serviçais intelectuais do lulopetismo pretendem convencer-nos de que a corrupção sistêmica é o preço inevitável da democracia. A “massa” nas ruas foi qualificada como “conservadora” e “reacionária” pela filósofa palaciana Marilena Chauí. Os adjetivos, porém, descrevem apropriadamente a política lulista. Berlusconi conservou a velha Itália dos privilégios e negócios escusos. Nosso Berlusconi é Lula, essa sentinela do Brasil patrimonialista.
Fonte: Folha de S. Paulo, 19/03/2016.
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