Sigo ainda desconfortável com o que parece ser o rumo da política monetária, em particular a gana do Banco Central em definir a priori um limite para a redução da taxa básica de juros num cenário marcado por elevada incerteza.
Porta-voz não oficial do BC justifica a postura do Comitê mesmo em face de projeções de inflação bem abaixo da meta no ano que vem (3,20% versus 3,75%) afirmando, em primeiro lugar que “não existe relação mecânica entre a projeção de inflação e decisões de política monetária”, o que é de uma obviedade atroz, mas, por outro lado, não exime o BC de explicar exatamente porque parece se agarrar a um limite de redução de juros que não guarda consistência com sua própria visão acerca da inflação futura.
Pela ata da última reunião do Copom, a justificativa seria a hipotética existência de um limite inferior para a Selic. Como explorei em artigo recente, tal limite seria determinado como o ponto a partir do qual a redução da taxa de juros não mais estimularia a atividade (e, portanto, a inflação), por força dos efeitos da desvalorização da moeda sobre os passivos das empresas com dívidas em dólares. Neste caso, segue o argumento, o dólar mais caro aumentaria o valor em reais da dívida, levando as empresas a cortarem gastos para adequar seu balanço à nova realidade, o que faria, paradoxalmente, a atividade e a inflação caírem ainda mais.
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Como também tive oportunidade de explicar, tal efeito não parece ser prevalecente no conjunto das empresas, já que – no balanço de ativos e passivos externos – as empresas brasileiras registram, em média, mais ativos do que passivos em dólares, enquanto seu passivo externo líquido é denominado em reais. Vale dizer, o encarecimento do dólar melhora a média dos balanços.
Obviamente, algumas empresas perdem, outras ganham e o impacto final para um lado ou para o outro depende provavelmente do tamanho das empresas afetadas. Seria possível, por exemplo, que algumas empresas de grande porte sofressem muito, de modo que o efeito sobre o conjunto da economia poderia ser negativo, mas, vamos falar a verdade, trata-se ainda de conjectura longe de ser provada, mesmo porque nos últimos anos não há relatos de empresas acumulando grandes dívidas em moeda estrangeira sem que tenham também fração relevante de suas receitas atreladas ao dólar.
De qualquer forma, porém, uma nova justificativa emergiu. Segundo o porta-voz, “o Copom olha (…) [para] a inflação esperada, que representa a média ponderada pelas probabilidades das projeções no cenário básico [isto é, aquele divulgado pelo BC em atas e no Relatório Trimestral de Inflação] e alternativos [que não são divulgados]”. Entre esses, “se destaca o cenário em que as programas de renda do governo se traduzem em queda menos intensa da atividade.”
Já isto é mais interessante, embora – como o leitor atento deve ter notado – acabe reintroduzindo a mesma “relação mecânica entre a projeção de inflação e as decisões de política monetária”. As projeções, bem-entendido, não são as mesmas (imaginamos, porque o BC não divulga seus cenários alternativos), mas a reação de política monetária vem daí do mesmo jeito.
O que realmente me incomoda, porém, é a falta de transparência.
Nos regimes monetários contemporâneos, em particular no regime de metas para a inflação, a transparência é parte essencial do processo. Não é por outro motivo que as decisões dos bancos centrais – há não muito tempo um procedimento envolto em segredo – são amplamente divulgadas e um esforço considerável é dedicado para justificá-las à luz dos objetivos de cada autoridade monetária, considerando – é bom deixar claro – os limites da informação disponível em cada momento.
+ Samuel Pessôa: Há limite para a taxa básica de juros?
Isso não ocorreu por acaso, ou por súbito acesso de boa vontade, mas porque o esforço de construção de credibilidade dos bancos centrais – aqui entendida no sentido estrito de ancorar as expectativas de inflação à meta – depende crucialmente da capacidade do público interessado ser capaz de julgar criticamente suas ações. Noutro contexto, por exemplo, de redução da taxa de juros, se resulta de convicção justificada sobre os riscos de a inflação ficar abaixo da meta, ou se representa tentativa de acelerar a atividade por motivos políticos.
A única forma de avaliarmos isso é por meio do exame crítico das condições que ditaram a decisão, dentre as quais as projeções de inflação são talvez o elemento mais importante. Decisões tomadas à luz de projeções desconhecidas, com premissas não reveladas e modelos secretos violam os requerimentos mais básicos de qualquer regime monetário atual.
Se o BC está convencido da necessidade de parar o afrouxamento monetário, deveria compartilhar com os demais os motivos dessa convicção. A falta de transparência é o principal motivo para que o BC perca a batalha pela ancoragem das expectativas de inflação, fato que até seu porta-voz conseguiu perceber.
Fonte: “A Mão Visível”, 07/07/2020