Nem toda palavra é precisamente aquilo que o dicionário diz que é e nem todo número é exatamente o que ele representa. Ilustrando a afirmação, a nota de política monetária e operações de crédito do sistema financeiro, elaborada pelo Banco Central (BC) do Brasil, mostra uma realidade que preocupa. Entretanto, dissecando as informações, pode-se chegar a uma interpretação de que a situação é ainda mais crítica.
Um exemplo é a metodologia de cálculo para a inadimplência média do cartão de crédito, que pode ser até 3,5 vezes maior, dependendo dos critérios utilizados.
As operações de cartão de crédito têm três modalidades: à vista e financiadas no rotativo e no parcelado. Fazendo o cálculo da média ponderada, como a inadimplência no rotativo é de 35,4% e no parcelado é de 0,5% – e elas têm, respectivamente, saldos de R$ 31,4 bilhões e de R$ 12,4 bilhões -, chega-se a 25,7% do saldo financiado com mais de 90 dias de atraso.
Os técnicos da autoridade monetária, que preparam a nota, incluem pagamentos à vista no cartão para chegar ao resultado. Estes, por definição metodológica do Banco Central, têm sempre zero de inadimplência e totalizam R$ 112,1 milhões. Dessa forma, os 25,7% ficam reduzidos a 7,3%, que é um número mais palatável. Algebricamente, a conta está certa; tecnicamente, há controvérsias.
A mora, que é a soma de atrasos (de 15 dias a 90 dias) e de inadimplência (mais de 90 dias), tem como resultado, usando a metodologia do Banco Central, 11,7%. E, sem incluir pagamentos à vista, sobe para 41,1%. É uma discrepância expressiva.
Correlacionando com outros indicadores de inadimplência, como os da Serasa, que apontam que mais de 50 milhões de cidadãos têm contas em atraso, os valores mais altos estariam mais sintonizados com a realidade do que os da autoridade monetária.
Há mais diferenças. Para o cálculo das taxas médias do cartão, o resultado final apresentado pelo Banco Central é de 84,9% ao ano, entretanto, ao excluir pagamentos à vista (que não pagam juros), fica 3,4 vezes maior e mais próximo do calculado pela Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade (Anefac), de 292,7% e de 304,0%, respectivamente.
[su_quote]O fato é que a metodologia do BC faz com que a taxa média de juros do país fique mais reduzida que por outras formas de cálculo[/su_quote]
Outros detalhes mostram os juros mais baixos nos métodos da autoridade monetária, como a inclusão do parcelado sem juros no cartão (financiado pelo lojista) e dos consignados do INSS e de funcionários públicos, que são tabelados (portanto, não livres) no crédito pessoal. O fato é que a metodologia do BC faz com que a taxa média de juros do país fique mais reduzida que por outras formas de cálculo.
Mais uma mudança foi a exclusão do quadro da proporção por tamanho de operação, que permitia acompanhar se o crédito ia para o pequeno ou para o grande tomador. Os números mostravam que o acesso ao crédito para operações de valores menores estava encolhendo em termos reais. Agora não é mais possível conhecer sua evolução.
Na estatística trimestral do Banco Central, com os balanços dos 50 maiores bancos, o número de funcionários do sistema, que estava encolhendo, deixou de ser apresentado em dezembro. A bem da verdade, a redução era esperada em razão de o aumento de produtividade ter sido maior que o crescimento do sistema. Atualmente, avaliar o desempenho dos profissionais de cada instituição virou outro ponto escuro.
Obviamente, a metodologia usada pelo Banco Central do Brasil, especialmente a partir de 2013, deixa o sistema mais bonito na foto. O problema da concentração do crédito para grandes tomadores desaparece, aumenta a relação crédito/PIB e são mostradas taxas, margens (spreads) e inadimplência menores.
Aprimoramento – Duas questões surgem em decorrência disso. Uma é como aprimorar a nota do Banco Central para que analistas e autoridades possam ter uma visão mais profunda dos números do crédito. Mais estatísticas poderiam ser incluídas, como o cálculo por fluxos e a composição das receitas. Boas informações são condições necessárias para bons diagnósticos e, consequentemente, para prescrições de política bancária mais adequadas.
A segunda questão, a mais importante, é que, mesmo usando os números oficiais, a situação merece atenção especial, há espaço para aprimoramentos. Corroborando a afirmação, em média, no Brasil, as taxas são quatro vezes maiores do que no Chile.
Note-se que há dez bancos que atualmente atuam nos dois países, que têm os mesmos acionistas, igual acesso a tecnologia, gestão central unificada e que operam com essas diferenças de taxas abismais. É inequívoco: se conseguem apresentar bons resultados lá, deveriam conseguir o mesmo aqui, com juros consideravelmente inferiores.
Note-se, ainda, que os problemas não estão circunscritos ao sistema bancário, há mais financiamentos e pagamentos em mora fora dele. Atrasos em contas de aluguéis, luz, água e impostos estão aumentando. O crédito comercial entre empresas e para seus clientes está secando, com consequências adversas para toda a economia.
Se ao quadro atual, que está difícil, for adicionado o cenário econômico de menos crescimento e inflação alta, é razoável apontar para um agravamento da situação de crédito do País. Leia-se: haverá mais desemprego e mais miséria ainda este ano, e nos próximos, se nada for feito com a política bancária ou com a falta de uma.
O que fazer? Fazer de conta ou fazer bem a conta e corrigir as contas?
Nos Estados Unidos, viveu-se uma situação com paralelos com a brasileira. Primeiramente, ignoraram o problema, deixaram a situação deteriorar até que ela se transformou numa crise, e a seguir fizeram uma reforma no crédito. Foi uma solução cara lá.
No Brasil, após o agravamento da dinâmica do crédito, houve uma mudança na forma de apresentar alguns números. É óbvio que a escolha tupiniquim foi mais rápida e simples. É isso.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 6/7/2015
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