Um caso analisado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), no dia 29 de agosto, demonstra de forma cabal e indelével a verdadeira barafunda tributária em que o país se meteu.
O julgamento era para definir se aquele calçado apelidado de Crocs seria uma sandália de borracha ou um sapato impermeável. Qualquer pessoa que olhe para aquilo dirá que sapato impermeável não é, pois, além de aberto na parte posterior, o calçado tem diversos furinhos na frente. O que parece óbvio para qualquer ser humano normal, porém, não é para os fiscais da alfândega e outros órgãos de fiscalização.
De acordo com dados do processo, inicialmente a companhia [importadora] classificava os calçados na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM) 6.402: sandálias de borracha. A empresa, entretanto, teve seus produtos retidos no porto de Santos sob a alegação da fiscalização de que a classificação correta da mercadoria deveria ser a da NCM 6.401, destinada a sapatos impermeáveis.
Registre-se que a classificação NCM 6.402 declarada anteriormente pelo importador sujeitava o produto à cobrança de uma taxa de US$13 por par, a título de antidumping. Já a classificação NCM 6.401, apontada pela fiscalização, não está sujeita àquela taxa. Ou seja, originalmente, a empresa declarava o produto da forma que lhe era mais desvantajosa.
Chamada a opinar, a Câmara de Comércio Exterior (Camex), vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic), que define os produtos a serem taxados por dumping, reconheceu que o produto deveria ser classificado na posição 6.401, e elaborou um laudo que confirmou a posição. Após ser multada pela classificação incorreta, a Crocs começou então a declarar o produto na posição indicada pela Camex.
Em Pindorama, entretanto, nada é definitivo quando o assunto são tributos, e, tempos depois, a empresa teve seus produtos retidos novamente no porto, sob a alegação, adivinhem, de que a posição declarada estava errada, e deveria ser a 6.402 (sandália de borracha). A companhia, assim, foi multada novamente, o que gerou o recurso ao Carf.
Segundo a Receita Federal, a revisão aduaneira e o respectivo laudo da Câmara de Comércio Exterior não têm força de homologação. De acordo com a relatora do caso no Carf, o contribuinte deveria ter feito uma consulta formal à Receita Federal, que é o órgão competente para definir as classificações fiscais. O Mdic, segundo ela, não teria competência para tal.
Felizmente, a relatora foi voto vencido, e prevaleceu o bom senso. O caso, entretanto, é muito ilustrativo de como o Estado brasileiro obriga a sociedade a um esforço hercúleo para tentar entender o emaranhado de normas tributárias que edita todos os dias, a ponto de nem mesmo os órgãos fiscalizadores se entenderem.
Como já mencionei aqui mesmo nesse espaço, esse verdadeiro pandemônio tributário aumenta de forma absurda o custo das empresas, que dependem da assessoria contábil, jurídica e fiscal de inúmeros especialistas, se quiserem manter-se relativamente atualizadas em relação às suas obrigações perante a administração tributária.
É óbvio que esse custo é repassado aos consumidores de bens e serviços, ou seja, a todos nós. O IBPT estima que o empresário brasileiro precise arcar com um custo médio de R$ 50 bilhões por ano para manter equipe especializada, sistemas e equipamentos necessários para suprir as exigências do fisco.
Além de beneficiar os sonegadores, essa barafunda tem um efeito perverso sobre o empresário honesto, porque o mantém em permanente estado de insegurança com relação aos seus direitos e deveres perante o fisco. Num ambiente desses, ninguém pode saber, com algum grau de certeza, se as suas contas com o Leviatã encontram-se quites, ou mesmo se não está pagando mais do que o devido.
A consequência mais nefasta desse estado de coisas é a imensa vulnerabilidade dos empresários à ação de agentes fiscais mal intencionados, corruptos e achacadores, que se valem dessa, digamos, “altíssima complexidade normativa” em proveito próprio. “As leis abundam em Estados corruptos”, já dizia Publius Cornelius Tacitus, há quase 2000 anos. Será que um dia vamos aprender?
Fonte: Instituto Liberal, 12/09/2017.
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