O Plano Cruzado, de 28 de fevereiro de 1986, foi o primeiro de uma série de cinco fracassos na tentativa de eliminar a superinflação brasileira. Além desse destino infeliz, todos tiveram outra característica comum: o de serem lançados da noite para o dia, como uma bomba monetária que subitamente mudava todos os padrões da economia, da moeda aos contratos.
Entendia-se, então, que o efeito surpresa era condição necessária para qualquer plano desse tipo. Se fosse previamente anunciado, argumentava-se, isso provocaria dois efeitos indesejados: a paralisação da economia e uma enorme desorganização, porque todo mundo correria às cegas em busca de posições defensivas. Nesse ambiente, seria impossível introduzir um novo sistema monetário.
A magnífica construção do Plano Real, em etapas, tudo pré-anunciado, mostrou que essa teoria do choque era falsa. Mas foram oito anos até se provar isso.
Os cinco planos na base do choque — Cruzado, Bresser (1987), Verão (89) Collor 1 (90) e Collor 2 (91) — tiveram que contornar, digamos assim, um enorme problema legal. Na preparação do Cruzado, durante o governo Sarney, os economistas quase mataram de susto o então consultor-geral da República, Saulo Ramos, quando lhe contaram que pretendiam mudar a moeda, os preços e todos os contratos, tudo por decreto-lei assinado pelo presidente.
“Vocês estão querendo uma bruta coisa maluca”, comentou Ramos, conforme, aliás, conto em meu livro “Aventura e agonia nos bastidores do cruzado”, Companhia das Letras, 1987.
O problema é que a alternativa, enviar projetos de lei ao Congresso, obviamente não existia. Seguiu-se, então, nos bastidores uma discussão sobre a constitucionalidade do plano via decreto-lei. E, apesar de suas restrições iniciais, foi o próprio consultor quem encontrou outra argumentação. Para resumir: como a hiperinflação estava levando a economia ao caos, então esse era um caso de ameaça à segurança nacional, situação em que o presidente da República poderia legislar por decreto-lei.
Vendo a história de hoje, parece uma interpretação forçada. Mas, na hora, em meio a uma grave situação, com a economia em frangalhos e a política em crise, caiu como uma solução salvadora.
De certo modo, os outros quatro planos seguiam essa mesma lógica. Tudo na base do decreto (depois medidas provisórias) lançado na calada da noite, quando bancos e mercados já estavam fechados.
Essa é a origem das tantas contestações judiciais que estão por aí, especialmente essa que chegou à pauta do Supremo Tribunal Federal, pela qual poupadores pedem a aplicação de outro índice de correção para as cadernetas existentes nos momentos dos planos Bresser, Verão e Collor 1 e 2.
Pela lógica econômica, os indexadores precisavam ser alterados. O objetivo era introduzir a moeda nova e impedir que a inflação passada fosse reproduzida no novo regime.
Se os preços e todos os ativos e passivos expressos na moeda antiga fossem corrigidos pelos indexadores vigentes no mês anterior à introdução do novo padrão monetário, isso contaminaria a nova moeda e tornaria o plano inútil.
Por isso, a preocupação, desde o Cruzado, foi fazer uma mudança neutra: eliminar e/ou alterar os indexadores, de tal modo que isso não provocasse ganhos nem perdas. Daí a correção de ativos e passivos pelo mesmo critério. No caso da poupança, as cadernetas e as dívidas imobiliárias, financiadas pelo dinheiro da poupança, foram corrigidas da mesma maneira.
Assim, não houve ganhadores nem perdedores. Credores e devedores, poupadores e devedores da casa própria, clientes, bancos e governo, todos tiveram a mesma correção.
Tudo isso para dizer o seguinte: se a mudança do indexador da poupança foi inconstitucional, então todas as outras alterações também o foram. Ou seja, o STF teria que declarar nulos, por inconstitucionais, todos os planos e restabelecer a moeda, os contratos, as regras e indexadores vigentes anteriormente.
Mas anteriormente quando? No velho cruzeiro? No cruzado novo pré-Bresser?
Não faz o menor sentido, não tantos anos depois. O STF poderia ter derrubado tudo logo após cada plano. Isso não aconteceu, a vida seguiu. Como se dizia, os fatos impuseram a constitucionalidade. Hoje, declarar inconstitucional apenas a regra de correção da poupança será uma decisão que distribuirá riqueza do nada. Quer dizer, do nada, não. A conta vai direto para o governo — pois foi o governo que baixou decretos, medidas provisórias e demais normas, impondo o modo de correção. E, se vai para o governo, vai para o contribuinte, atual e futuro.
Os planos fizeram sentido na época e pelo menos evitaram explosões de hiperinflação. O Real resultou também desse aprendizado. Mudar um pedacinho do passado e impor enorme prejuízo à economia de hoje não faz sentido.
Fonte: O Globo, 28/11/2013
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