Nesta corrida presidencial, a fé tem dado o que falar. Marina Silva e Jair Bolsonaro protagonizaram uma troca acalorada no debate da sexta-feira passada (17), na Rede TV!, com direito a referências bíblicas.
Cabo Daciolo chamou a atenção com um discurso religioso inflamado. Os três nos mostram diferentes maneiras pelas quais a fé e a política se misturam.
Daciolo parece ter uma fé sincera; talvez sincera demais. Nele, o ímpeto devocional e místico fala mais alto do que a prudência política.
Daciolo foi expulso do partido que o elegeu deputado (o PSOL) por querer fazer do Brasil uma teocracia; profetizou no plenário da Câmara que a deputada Mara Gabrilli voltaria a andar (até agora, não aconteceu); pode se ausentar de debates e entrevistas se julgar que Deus assim o ordena.
Suas falas nos debates renderam alguma notoriedade, mas jamais será levado a sério como político. A religião exacerbada o limitou.
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Bolsonaro, pelo contrário, parece instrumentalizar a religião para fins políticos; ostenta sua fé para alavancar um projeto de poder. Seu cristianismo é acima de tudo uma afirmação de imposições morais e do uso da violência: cultua armas e venera a memória de um torturador. Parece feito para agradar a todos —se diz católico, mas se fez batizar pelo Pastor Everaldo em 2016 nas águas do rio Jordão, em Israel.
Nisso, faz lembrar Constantino, primeiro imperador romano cristão. Sua conversão não se deu por ter sido tocado pela mensagem de Jesus, e sim por uma visão milagrosa que lhe prometeu, caso se convertesse, a vitória militar e o trono imperial.
Diferente de ambos, Marina tenta conciliar uma fé sincera com as exigências da política que não se pauta por essa fé. Busca traduzir em suas propostas os ensinamentos de Cristo e o respeito à visão moral do cristianismo, embora sem imposições: em vez de violência, fortalecer comunidades e ajudar os mais fracos. É o exemplo, e não o castigo, que deve imperar.
Ao mesmo tempo, um forte sentido de integridade pessoal —uma marca das igrejas evangélicas— a leva a agir de uma nova maneira na política: fugindo das alianças fisiológicas e do império do marketing. Esse idealismo pode custar caro, mas, em tempos de profunda descrença na política tradicional, tem seu apelo.
E o Estado laico? É compatível com essas mostras de fé? Completamente. Ele garante que nenhum livro sagrado ou profeta será utilizado como fonte de nossas leis; que todas as crenças e formas de culto pacíficas serão toleradas; e que o Estado não privilegiará nenhuma igreja ou grupo religioso.
O Estado é laico, mas as pessoas, não. Cada um se guia e se inspira por seus ideais e convicções elementares (ou falta delas), venham elas de onde for. Olhando de perto, todas as nossas intuições básicas sobre o certo e o errado e sobre o bem comum têm um caráter religioso; isto é, decorrem de um ato de fé, e não de uma conclusão racional. Não dá para excluir algumas (supostamente “religiosas”) e manter outras (supostamente “laicas”).
O Brasil é profundamente religioso. Em vez de banir, por medo ou preconceito, uma força que está aí e que é inclusive maior do que a pequena elite secularista que se lhe opõe, faz mais sentido apoiar aquelas pessoas de fé cuja atitude e comportamentos promovam uma sociedade mais justa, humana e tolerante –ideais que, de alguma forma, também dependem da fé.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 21/08/2018