“Democracia tropical” reúne textos publicados pelo jornalista e reflete sobre contexto histórico e cenário atual da política
Caruaru (PE), 1987. Um dos diversos comícios pela “Diretas Já” realizados naquele ano no Brasil reuniu no mesmo palanque duas figuras que, na época, eram proeminentes lideranças políticas: o então governador de Alagoas Fernando Collor de Mello e o líder sindical Luís Inácio Lula da Silva. Logo depois, os dois protagonizariam a primeira eleição presidencial realizada após o fim do regime ditatorial usando, cada um à sua forma, a bandeira do combate à corrupção. Collor era o “caçador de marajás” e Lula representava a renovação e a ética na política.
Trinta anos depois, já na condição de ex-presidentes da República, ambos estão novamente no mesmo “barco”, mas desta vez acossados por acusações de corrupção por investigadores da Operação Lava Jato. Com a credencial de quem acompanhou de perto, seja como testemunha, seja como ator, os principais episódios da história política brasileira nas últimas décadas, o jornalista, ativista e ex-deputado federal Fernando Gabeira considera esta história a imagem que resume o “fracasso” da democracia brasileira.
Evidente que alguma coisa errada aconteceu. Todas as promessas políticas brasileiras voltadas para reduzir a corrupção acabaram se envolvendo nela”, observa.
Leia “Democracia tropical”, de Fernando Gabeira
Nas últimas três décadas, Gabeira tem registrado suas impressões sobre as conquistas e percalços da nossa jovem democracia em textos ora reflexivos ora na linguagem direta dos artigos publicados nos principais jornais do país ao longo do turbulento ano de 2016. O resultado está reunido em Democracia Tropical – Cadernos de Aprendiz, 12º livro de Gabeira, que será lançado no próximo dia 24 pela editora Sextante. “É um relato escrito como uma memória do que aconteceu desde o movimento das Diretas entremeados de alguns artigos que dão um quadro, um clima do país neste período atual”, resume o jornalista.
No livro, Gabeira revisita a luta pelo restabelecimento da democracia brasileira, o impeachment de Collor e a ascensão do PT, a Lava Jato e o surgimento das delações premiadas, as manifestações de 2013, o crescimento dos governos de esquerda na América Latina e até as conjunturas que levaram o empresário Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Um episódio que recebe destaque é o segundo impeachment de um presidente da República brasileiro acompanhado de perto pelo autor. Ao analisar as questões que levaram à cassação do mandato de Dilma Rousseff e suas consequências, não fica em cima do muro: diz com todas as letras que foi impeachment e não golpe. Classifica o episódio como “feio, mas necessário”. Segundo ele, Dilma foi cassada pelo crime de responsabilidade fiscal, mas se não fosse por isso “seria pelos fatos de Curitiba: campanha com dinheiro do petrolão, tentativa de obstrução de Justiça”.
Seus olhos de jornalista observam os ventos da mudança e o surgimento de um personagem onipresente nos dias de hoje: os smartphones, sua capilaridade e capacidade de comunicação. E conclui que eles foram fundamentais para uma mudança de comportamento. Ao ter mais acesso à informação, e interagir com elas, os cidadãos estão mais ávidos por “transparência”, observa. É quando faz fortes críticas ao PT. Gabeira observa que o partido, quando chegou ao poder, até se rendeu à corrente da transparência quando deu mais autonomia à Polícia Federal e fez uma lei de acesso à informação. Mas segundo ele, subestimou a “irresistível dinâmica” desta linha de pensamento.
Essa “miopia”, diz Gabeira, culminou numa contradição petista: “armou o maior esquema de corrupção da história no momento em que a sociedade e as instituições estão mais bem posicionadas para impor um alto grau de transparência”, escreve no livro.
As críticas ao PT – legenda à qual pertenceu e da qual se desfiliou em 2003, antes do Mensalão, primeiro grande escândalo que envolveu o nome do partido – não impedem o autor de apontar o dedo também para o PMDB e o presidente Michel Temer, sucessor de Dilma. “O PMDB foi o sócio menor da quadrilha no poder. Um sócio menor em termos de receita, digamos assim”. Gabeira conta que durante algum tempo Temer acenou para “algo melhor” depois do impeachment, mas segundo ele, “é só conversa”. E conclui, sarcástico: “Temer está feliz com a Presidência, que não alcançaria em outras circunstâncias”.
Gabeira atendeu a reportagem do “Estado”, na última quarta-feira, 12, quando estava na fronteira entre o Brasil e a Venezuela. Acompanhava, como jornalista, o movimento de refugiados do país vizinho. “No século passado eu estava na Itália, no desembarque vendo chegar refugiados albaneses. Agora estou vendo chegar os venezuelanos. Ou seja, no século 20 eu vejo chegar refugiados do chamado socialismo real, e agora do chamado socialismo do século 21”, disse. O trabalho é uma extensão da análise que ele faz, no livro, sobre o crescimento e a derrocada dos governos de esquerda no Brasil e na América Latina. “Um fracasso completo”.
Para Gabeira, no caso da esquerda brasileira há um problema em especial, porque se apoia em apenas um indivíduo. “Ela não tem um projeto que não seja o de colocar de volta o Lula no governo”. Para ele, há duas saídas para a esquerda voltar ao poder no Brasil. “Primeiro fazer uma autocrítica profunda, o que não daria tempo a ela de se recuperar até 2018. A segunda é continuar negando (seus erros). Continuar negando e sendo atropelado pelos fatos é também avassalador”, disse. Segundo Gabeira, a situação também é ruim para os tucanos, cujos principais caciques também foram citados na Lava Jato. “Se é difícil para o PT lançar um candidato para tentar salvá-lo de uma prisão pelas urnas, o PSDB é impossível porque o próprio eleitorado vai rejeitar isso na base”.
Em tom de brincadeira, Gabeira define a democracia brasileira como uma filha, que este ano completa 32 anos. “Não é mais uma adolescente mas é uma filha nossa. É hora de a gente se reunir para analisar o que deu errado nela”, brinca. Sua expectativa para o futuro está na apresentação do livro. “Mesmo sem ter ainda o quadro nítido de um futuro em que a política renovada salte o abismo que a separa da sociedade e que o crescimento econômico reintegre os milhões de desempregados, é nele que deposito minhas esperanças de aprendiz”.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”
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