Tendo concluído os primeiros cem dias de governo – período em que não é de bom tom louvar ou criticar qualquer gestão -, Dilma Rousseff já está começando a mostrar a que veio. Governar o Brasil não é fácil. Fernando Henrique Cardoso teria dito – no início de seu primeiro mandato, em 1995 – que estava tirando o trabalho de letra. Se falou realmente, não se sabe. Mas teve oito anos para se arrepender de tal bravata. Passou sua gestão inteira sendo duramente castigado pela “malvada da realidade”. Governar o Brasil não é fácil, não. O curioso é que todos os governantes da nossa História republicana – de Deodoro a Lula, passando por Getúlio Vargas, JK e os generais – iniciaram suas gestões com a convicção de que iriam se sair muito bem. Boas ideias e ótimas intenções nunca faltaram. E áulicos para exaltá-las, também não.
Enquanto ainda houver vagas por preencher e verbas a serem alocadas, ninguém ousará falar mal do governo. A visão crítica ficará restrita à imprensa e às oposições. Mas estas estão cumprindo o seu papel. É o que se espera delas numa democracia.
Os percalços começam a surgir quando o governante percebe que quase não tem mais munição. Todos os recursos já foram empenhados, não há mais empregos a oferecer: dali em diante, só por substituição – seja de pessoas, seja de rubricas. O enxovalhamento e o achincalhe dos agora ex-amigos, “magoados com tamanha ingratidão”, são previsíveis.
O que é mais difícil de metabolizar não é a acidez dos inimigos, mas a intransigência do chamado “fogo amigo”. Não dá para satisfazer a todos. O elevador lota depressa, alguém tem de ficar de fora. E, sem dúvida, vai chiar por causa disso.
Governante que se sai bem é aquele que tem consciência desse fato. Se não dá para contemplar todo mundo, que se beneficie apenas a maioria ou, então, que se escolham os que têm maior poder de retaliação. Dona Dilma – que já foi professora de Ciência Política – sabe bem do que se trata.
Minha iniciação no universo da política se deu em pleno regime militar, nos tempos de Geisel. Eu militava no movimento estudantil, em 1978, quando decidi me engajar na candidatura ao Senado do então professor Fernando Henrique. Como na época só podiam funcionar dois partidos, o governo permitia a oficialização de até três sublegendas por agremiação. FHC representava uma dissidência à esquerda no MDB. E aquela era uma boa oportunidade para correr o Estado, tornar-se conhecido, afirmar-se como político e divulgar suas ideias. Estudantes e mestres, todos o apoiavam com entusiasmo. Até mesmo Lula – então um líder sindical emergente – o apoiou.
Nós, já naqueles tempos, acompanhávamos o noticiário político. Não havia eleições diretas para presidente. O titular que saía indicava o sucessor, que se tornava o candidato oficial do partido do governo, o qual tinha maioria no Congresso, que era quem “elegia” o novo mandatário. Um processo à prova de surpresas. A gente ficava sabendo quem seria o próximo governante com pelo menos um ano de antecedência. Tempo de sobra para que este pudesse montar a sua equipe. E para que o povo se familiarizasse com ele.
Pois bem, o presidente Ernesto Geisel indicou o general João Figueiredo como seu candidato oficial e, como pretendia revogar o Ato Institucional n.º 5 antes do fim de seu mandato, recomendou-lhe que desse um jeito de se tornar popular. O “Fig” – como o chamavam -, decididamente, não era do ramo. Dirigia o SNI, o famigerado e paranoico serviço de informações do governo, estava sempre de cara fechada, não era nada expansivo e usava óculos escuros mesmo à noite.
Oficial de Cavalaria, o próprio Figueiredo reconhecia que gostava mais “do cheiro de cavalo” que do de gente. Além de cavalgar, segundo ele, o seu passatempo preferido era “resolver problemas de matemática”. Como seria possível alguém assim se tornar popular?
Pois o milagre aconteceu. Sua imagem foi bem trabalhada: por sugestão dos marqueteiros da época, passou a usar óculos transparentes, auto-alcunhou-se “João do Povo” e os seus modos rudes foram apresentados ao povo como se se tratasse de um “jeito de ser” objetivo, franco e sincero. Fiel ao figurino, ele se entusiasmou e chegou a declarar à imprensa que iria restabelecer a democracia no Brasil, mesmo que para tanto tivesse de “prender e arrebentar”…
Voltando ao argumento inicial, ainda é muito cedo para afirmar que dona Dilma será uma excelente governante. Aos cem dias de governo, todos os presidentes parecem ser bons. Como se diz, a esperança sempre prevalece sobre a experiência…
Dilma será melhor do que Lula? Depende do ponto de vista.
Diferente, com certeza, ela será. Dava-se a isso, antigamente, o nome de “marketing de posicionamento”: se a marca x – que acabou de ser lançada – não tem condições de concorrer no mercado com a marca y – cuja imagem já está estabilizada -, o melhor a fazer é se apresentar como diferente.
Lula e Dilma, Dilma e Lula: eles não são tão parecidos e indissociáveis assim.
E isso ficará claro logo mais à frente. Se o governo dela se sair bem e se com ele não ocorrer nenhum imprevisto, é bem provável que ambos se enfrentem em 2014 nas eleições. E, assim sendo, os seus assessores começarão a se estranhar desde já. É esperar para ver.
Ela, agora, precisa se afirmar sozinha. Tratar de criar a sua própria marca. E, ao se pretextar culta e refinada, o imaginário popular a identificará mais com o estilo requintado e contido de FHC do que com o espalhafatoso e descomedido de Lula. Ambos são vaidosos, ambos são vangloriosos e ambos, agora, são ex-presidentes. Cada um tem o seu próprio perfil.
E, entre os dois, o coração de Dilma balança.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 08/04/2011
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