Em artigo recente que muitos devem ter lido, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso faz uma análise da situação atual da oposição e sugere algumas alternativas de posicionamento político para o PSBD. O artigo, como convém ao FHC, é um tiquinho prolixo, mas muito bem argumentado.
Contudo, de 5.473 palavras escritas (incluindo aí palavras repetidas), somente uma foi destaque e caiu na boca daquele que acredita ser o rei-sol tupiniquim: povão. No artigo, FHC indica que o PSDB não deve estar voltado ao povão em sua busca de eleitorado, pois o mesmo já está sob os domínios do partido atualmente no poder no governo federal: o PT.
Não pretendo discutir aqui conceitos morais de política, nem examinar os meios pelos quais o tal povão foi conquistado pelo PT. Isso, nesse artigo, não vem ao caso e demandaria muito mais palavras que as 5.473 usadas pelo FHC.
Mas quero analisar a palavra povão e a repercussão que a idéia proposta pelo FHC poderá ter no PSDB se for adotada (e eu, particularmente, recomendaria que o fosse).
Como muitas outras palavras, povão representa um conceito. E como muitos conceitos, há entendimentos e significados diversos pra grupos ou pessoas diferentes. No contexto que o ex-presidente a usou, a palavra teve sentido negativo: uma massa amorfa de pessoas sem conhecimento e poder de discernimento que é comprada com algumas migalhas e um discurso simpático (FHC provavelmente lembra-se de Weber toda vez que pensa em Lula). No texto, FHC distancia-se dessa massa, não mostrando por ela qualquer empatia ou identificação (reitero: no texto, não posso avaliar o que o ex-presidente sente).
Mas a palavra povão pode ter contextos positivos, dependendo quem e em que contexto está sendo usada. Na boca do ex-presidente Lula (não esperemos que seja na pena do ex-presidente), o povão é fator de identificação, afinal, ele coloca-se em público como membro do mesmo. E povão deixa de ser a massa amorfa e ignorante para serem as pessoas que necessitam de ajuda governamental para obter melhores condições de vida.
No entanto, tanto nas palavras de Fernando Henrique, como nas palavras de Lula, o povão representa pessoas pobres, distantes dos valores “típicos” da classe média: empreendedorismo, priorização do trabalho, posse de bens como casa própria e carro, afiliação a clubes, etc.
E como a força da palavra povão e esse possível posicionamento (no sentido mercadológico da palavra) afeta o PSDB?
Caso o partido decida não priorizar o diálogo com o povão, ele perderá dois públicos que, aparentemente ele já não tem: quem se considera povão e quem (pelo menos no discurso) simpatiza com o tal povão. Os segundos são a esquerda clássica, que não vão votar no PSDB por discordar da história do partido em muitos pontos (a privatização da Vale provavelmente ainda é o principal, estigmatizada com os argumentos mais dissociados da realidade já vistos).
Mas e o primeiro grupo? Bom, o primeiro grupo é quem se considera povão. Ou seja, independe do fato de ser objetivamente (?) ou não. E o grupo que talvez esteja na berlinda entre se considerar povão ou não seja a nova classe média, que é com quem o FHC indica que o PSDB deve dialogar.
Olhando a renda e a proporção de pessoas dessa classe no Brasil e lembrando que renda é um fator limitador para separar as pessoas em grupos, mas que muitas vezes serve como proxy, temos o seguinte (segundo os dados da Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa, que estima a renda com base no consumo das famílias, base de coleta dos dados de 2009):
Renda média familiar | ||
Classe | Pontos | (Valor Bruto em R$) – 2009 |
A1 | 42 a 46 | 11.480 |
A2 | 35 a 41 | 8.295 |
B1 | 29 a 34 | 4.754 |
B2 | 23 a 28 | 2.656 |
C1 | 18 a 22 | 1.459 |
C2 | 14 a 17 | 962 |
D | 8 a 13 | 680 |
E | 0 a 7 | 415 |
Distribuição da população por classe | |
A1 | 0,5% |
A2 | 4,0% |
B1 | 9,1% |
B2 | 19,3% |
C1 | 25,6% |
C2 | 23,2% |
D | 17,1% |
E | 1,1% |
Pela faixa de renda, é provável que aqueles das classes B1 para cima não se reconheçam como povão e aqueles das classes C2 para baixo reconheçam-se. Então, a disputa de votos fica exatamente naqueles eleitores das classes C1 e B2 (45% da população), que não se qualificam como beneficiários de programas sociais, mas ainda não estão enquadrados nos estereótipos da classe média clássica.
São micro-empresários, prestadores de serviços, funcionários administrativos em escritórios etc. São as pessoas que ganharam poder de compra e que estão começando a sentir o gosto do que é ser classe média. Esses se reconhecem como povão? Ou estão mais próximos de valores “burgueses típicos”? São indecisos? Precisam de mais referências para enquadrar-se em um desses dois grupos? Quem dará essas referências? Serão um terceiro grupo social?
Se o PSDB quiser ter essa linha de pensamento – focalizar na pequena classe média apostando que essa terá valores similares a de seus eleitores, terá de responder a essas respostas e fornecer um discurso no qual essas pessoas se enquadrarão. Mais ou menos o que o PT fez com o tal povão.
Eu concordo com o FHC tanto na embalagem quanto no produto. Porque veja bem, o FHC escreveu um artigo enorme, umas 15 laudas, que sairia numa revista extremamente segmentada. Quem falaria disto? Quem ligaria? Quem se daria ao trabalho de ler? A “confusão” de FHC, o uso do termo povão foram provavelmente propositais, e conseguiram o que ele queria, ou seja, muita gente que jamais ouviria falar do artigo correu para lê-lo e refletir o que ali era tratado.
Ponto para FHC.
Confesso que, ainda, não li o artigo de FHC, mas entendi o que ele quis dizer. Não se trata de menosprezar o “povão”, mas apenas um olhar técnico-político, pois é óbvio que a classe menos favorecida da sociedade, que recebe o bolsa-família, não vai nunca se dispor ao menos conversar sobre os erros do PT no governo. Resta ao PSDB tentar arregimentar correligionários na classe média que, esta sim, tem livre acesso e tempo disponível de mostrar ao “povão”que ele está sendo enganado pelo PT.E…