A história das democracias modernas inclui transformações que, por serem incrementais e levadas a cabo sem uma escalada de conflitos, constituem “revoluções silenciosas”. São gestadas por mudanças difusas nas preferências coletivas, culminam na formação de consensos abrangentes e em novos critérios de legitimação política. Assistimos a um ciclo desse tipo em nossa região em tempos de inflação.
No Brasil a estabilidade econômica foi adquirindo valor de um bem público para vários estratos sociais e visibilidade para gestores e políticos eleitos: na esteira de frustrações, de experimentações macroeconômicas e dos debates que se seguiam. Parte do sucesso deveu-se ao caráter transversal do impulso renovador, para além das fronteiras de classe. Mas sempre na contramão dos impulsos particularistas dos interesses organizados então dominantes, sindicais ou patronais – a nossa modalidade de “coalizão inflacionária”.
O ciclo transformador culminou com a URV e o Plano Real, mas não se esgota em sua dimensão econômica. Primeiro, pelo método inédito de relacionamento com a cidadania. Além de dispensar sigilos e surpresas de choque, seus arquitetos se valeram da participação cooperativa da cidadania no novo experimento monetário. Sem a qual a incorporação da URV aos cálculos quotidianos da população e a passagem para o real não teriam ocorrido. Seguiram-se outros efeitos extraeconômicos. A Lei de Responsabilidade Fiscal instituiu novas modalidades de accountability (responsabilização e prestação de contas) por parte dos gestores. O modus operandi da classe política e os termos da concorrência eleitoral mudaram, graças às evidências de que o populismo econômico com forte viés corporativista deixara de render dividendos eleitorais. Em 2002, nenhum dos candidatos de oposição questionou as medidas disciplinadoras do velho tipo de gastança. A Carta ao Povo Brasileiro e as políticas do primeiro mandato do presidente Lula completaram o ciclo. O saldo líquido foi a ressocialização da classe política: candidatos de esquerda, direita ou centro, hoje, fazem seus cálculos políticos com um olho no poder de fogo dos mercados e outro no do eleitorado.
A Lei da Ficha Limpa, como movimento social e como norma codificada, inaugura um ciclo transformador. Que pode ou não se completar. Minha hipótese, que defendo a seguir, é: por sua origem, lógica e dinâmica políticas, ela estabelece a exigência de um vínculo forte entre participação política e accountability, típica das democracias de qualidade. A ênfase exclusiva no primeiro termo dessa equação, sem o segundo, é a quintessência dos populismos com viés corporativista e autoritário.
Uma das características distintivas do Ficha Limpa enquanto modalidade de participação política é sua transversalidade: a mesma voz, de estratos sociais diversos, deu impulso à construção do consenso em torno do projeto. Além disso, é um movimento autônomo em relação aos atores políticos e ao modo de fazer política dominantes: impôs sua agenda à margem de um Executivo hiperativo e de um Congresso mais atento às suas prioridades e às do governo. Essa dinâmica perversa foi desarticulada (temporariamente), o projeto aprovado nas duas Casas, de olho no eleitorado. Mas é contra o pano de fundo do modo de fazer política dominante que a Lei da Ficha Limpa pode (ou não) operar uma revolução silenciosa. Primeiro, por sua autonomia e seu caráter apartidário. Contrasta, assim, com o destino de movimentos sociais que abdicaram de sua autonomia original, atraídos pela força gravitacional do Estado, manipulada eximiamente pelo governo como agente de redistribuição de recursos públicos. Atraídos, sobretudo, pelo privilégio da dispensa de prestação de contas e de responsabilização quanto ao uso desses recursos: caso das centrais sindicais, dos movimentos pela reforma agrária, das ONGs amigas.
Mas outro tipo de transversalidade dá alento a quem julga que a democracia brasileira pode mais. A codificação dos novos critérios de legitimação política continuará envolvendo também os atores do sistema de Justiça. O Tribunal Superior Eleitoral pronunciou-se, as ações contestatórias chegarão ao Supremo Tribunal Federal, sob o escrutínio do Ministério Público e dos meios de comunicação. O Tribunal de Contas da União lista os gestores sob suspeição. É essa dinâmica política que institui o que chamamos, no jargão da ciência política, a accountability horizontal – entre as instituições e os Poderes. Para diferenciá-la da modalidade vertical de responsabilização, exercida pela cidadania em relação aos Poderes constituídos. A Ficha Lima é um avanço em termos das duas modalidades. Por isso leva em seu bojo a exigência de um vínculo forte entre participação política e prestação de contas, seja aos Poderes constituídos, seja à cidadania.
Por que inaugura um ciclo transformador? Porque rompe com a lógica política perversa de erigir a participação política em condição suficiente do avanço democrático – típico do viés corporativista do nosso legado. Um viés que volta a ganhar corpo, com alma plebiscitária, em detrimento da representatividade do sistema partidário. Nos termos de Werneck Vianna, “as velhas formas de representação recuperaram viço, fortalecendo seus vínculos com o Estado e adotando uma perspectiva instrumental em relação aos partidos”. Prevalecem as bancadas transpartidárias. O governo do PT aprofundou o viés, com os conselhos, como o de Desenvolvimento Econômico e Social, “de formatação inequivocamente corporativa, a fim de exercer funções de mediação direta entre o governo e a sociedade” (Eterno retorno, Valor Econômico, 21/6, pág. A6).
Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” – 29/06/2010
Não deu para transformar o Ficha-Limpa em algo próximo da Constitucionalidade, ainda. Essa lei foi encomendada e aprovada, as pressas, pq é uma aberração jurídica. Já colheremos os dividendos. Quer dizer, vcs não.