Vivemos de figuras de todo tipo, como a de inocentes e de criminosos. De poetas e políticos – uns mentem falando a verdade; os outros são viciados em tratar da verdade mentindo.
A palavra “figura” agasalha muitos sentidos. O mapa do Brasil é uma figura na forma de presunto, como dizia Lima Barreto. Todo mundo sabe quem o come, mas “figura” que não sabe. Eis um outro sentido para essa imensa palavra: o fingir ou esquecer.
Todo ser imaginário é uma figura que é carta de baralho e configuração geométrica. A pirâmide serve como uma boa representação de um Brasil onde poucos governam ganhando muito e onde muitos são governados recebendo pouco.
“Figura” também significa aspecto, emblema, alegoria. Até anteontem, a figura de uma pessoa negra etiquetava um escravo; hoje, uma consciência maior da nossa alergia à igualdade faz o uniforme branco das babás virar um problema anunciado em pelo menos duas colunas importantes: a do Ancelmo Gois e a da Miriam Leitão.
E, no entanto, o branco é uma representação do limpo e do transparente. Símbolo da paz, não deixa de ser curioso como o branco se relaciona com os fantasmas envoltos em névoa. Esse nevoeiro de um Brasil escravocrata que escondemos, no qual o branco figurava como uma personificação da propriedade de pessoas.
Uniformizar, como disse Max Weber, faz parte do mundo moderno onde médicos, garçons, policiais, engenheiros, cientistas e operários estão uniformizados. A questão é o uso obrigatório e simbólico da roupa para distinguir as babás nesses clubes de elite. Ser de elite dispensa para cima; já o uso obrigatório do uniforme distingue para baixo. Uma presumida superioridade dada pela riqueza, pelo poder ou pela celebrização extingue a culpa, do mesmo modo que o emprego doméstico deve lembrar – pela roupa usada como cicatriz ou estigma – a origem escravocrata do serviço que promove a intimidade, mas (e aí está o ponto) não pode conduzir à igualdade. Ora, uma intimidade (o dar a mão) sem igualdade (o não tomar o braço) tem sido o princípio estruturante de toda a nossa vida social.
Uma das babás diz ao jornal (“O Globo”) que elas não têm nome. São “babás”: o papel social de anjos da guarda dos filhinhos amados de suas bem-postas patroas promove o sumiço de suas cidadanias. Sempre foi assim. Façamos um teste – responda rápido: qual é o nome completo de sua empregada doméstica?
Entre a escravidão na casa e o pseudomoderno emprego doméstico quase não há hiato. A continuidade foi feita abafando a igualdade, mas mantendo a intimidade que humaniza a todos, não liquidando, porém, as subordinações. No fundo, os problemas não são somente das babás, mas das patroas receosas de serem confundidas com suas “criadas”, na medida em esses serviços se profissionalizam e trazem à tona esses dilemas.
Há aqui um sintoma da silenciosa, mas permanente revolução igualitária que se realiza hoje no Brasil. Ela surge na indignação com administradores públicos corruptos e ineficientes; com o populismo calhorda que aristocratiza roubando, e é profundamente anti-igualitário porque deseja a exceção e o retorno do poder como instrumento de aristocratização; e passa por essas barbaridades de assassinar em lugares públicos como ruas e restaurantes porque o “outro” não sabe com quem está falando. Aí temos crimes cometidos em nome de uma desavença pessoal interpretada como falta de respeito, porque, se desconhecido não se comportar como um inferior, ele vira um inimigo.
Toda reação contra a regra da lei para todos revela esse nosso temor de uma impessoalidade que conduz ao igualitarismo contrário à boa e velha hierarquia que nos indicava com quem falávamos. É terrível ver sumir o mundo de exclusividades e testemunhar a raia miúda frequentando locais e usando roupas privativas dos grã-finos.
O surto de uniformizar para distinguir para baixo faz parte dessa reação à igualdade que chega para calibrar a liberdade excessiva dos que têm muito. Como distinguir para baixo se todo mundo está ficando muito parecido? Como saber com quem se está falando se não se sabe mais quem é a mãe ou a babá da criança?
Eu seria favorável ao uso compulsório do uniforme branco nos clubes se os bandidos também fossem obrigados a usar as máscaras típicas de suas figuras. Mas aí o (des)mascarar seria equivalente à revolução que tanto queremos e – eis a questão – não queremos. Senão, não seríamos campeões mundiais de empregadas domésticas.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 23/01/2013
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