O Estado de Direito sempre pareceu um grande mal-entendido no Brasil. Quando d. Pedro 1º assinou, em 1826, tratado com a Inglaterra extinguindo o tráfico de escravos, houve forte reação das elites locais ao que seria um atentado contra seus direitos e um risco à economia da nação. Logo se percebeu que o medo era exagerado, pois o Estado brasileiro nada faria para impor a lei que, afinal, fora feita apenas “para inglês ver”.
Autores tão distintos como Alberto Torres, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque, Raymundo Faoro ou Roberto DaMatta denunciaram o hiato entre a lei e a realidade no Brasil. Aqui, muito mais do que estabelecer direitos e deveres iguais entre os cidadãos, a lei tem servido, sobretudo, para o estabelecimento de discriminações e privilégios. Pior, as instituições responsáveis por sua aplicação, em vez de aplicarem o direito de forma imparcial, especializaram-se em construir doutrinas e atalhos que permitem que a lei seja aplicada de maneira seletiva: docemente para os amigos; brutalmente para os inimigos. É o que Sérgio Buarque chamaria de padrão cordial de aplicação da lei.
É difícil avaliar se a convulsão a que estamos submetidos abalará o mal-estar que sempre pautou o nosso relacionamento com a ideia de Estado de Direito, em especial com a noção de imparcialidade que constitui o próprio cerne do conceito de legalidade, ou se se trata apenas de um momento exacerbado do “cordial” e perverso padrão de aplicação da lei no Brasil.
Qual o significado dos afastamentos (provisórios) da presidente Dilma, pelo Senado, e de Eduardo Cunha, pelo Supremo? Como interpretar a condenação de opulentos capitães de empresa, plutocratas partidários e seus anúncios na Petrobras? O que dizer da imputação junto ao Supremo de velhas e novas oligarquias políticas, que comandam o alto e baixo clero de nosso parlamento, que só tende a se alastrar com as delações premiadas ainda por vir?
Para alguns analistas políticos é sinal de que as instituições de 1988 entraram em profundo colapso. Não se pode negar a barafunda do sistema partidário impulsionada por um sistema eleitoral insensato, insculpido pela Constituição. Nem uma desigualdade abissal e persistente, decorrente de um sistema tributário regressivo.
É necessário reconhecer, no entanto, que o desnudamento da nossa cornucópia política também é fruto de uma cidadania mais robusta, que exige os seus direitos, não apenas em termos de prestação de políticas e serviços públicos, mas também de um padrão mais alto de integridade na condução da coisa pública, como testemunhado em junho de 2013. Da mesma forma, uma maior autonomia das agências de aplicação da lei, compostas por uma nova geração de agentes formada num ambiente democrático, tem contribuído de forma decisiva para iluminar e responsabilizar as redes de interesses políticos e econômicos que se apropriaram da vida política brasileira.
Ambos esses processos, diretamente decorrentes do pacto de 1988, parecem apontar para um novo padrão de relacionamento do Brasil com o direito. A tolerância com muitos dos políticos e empresários que não perceberam essa mudança parece estar terminando. Será o fim da cordialidade ou apenas mais uma de suas escaramuças?
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 9 de julho de 2016.
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