Paulo Rabello de Castro, Carlos Augusto Junqueira e Ignez Barreto*
As UPPs deram muito certo. Mas, após uma arrancada brilhante, começaram a “dar errado”. Por quê?
De início, o processo de pacificação nas favelas do Rio nos trouxe a reconquista territorial, que consolidou a presença do Estado como poder repressor e agente da ordem pública e perspectiva de segurança à integridade física dos moradores. Naquele momento de lua de mel com moradores e opinião pública, os passos seguintes deveriam ter sido dados: conjugar a segurança física, recém-conquistada, à segurança civil, por meio de um programa de acesso ao pleno direito à propriedade, mediante a legalização em massa das posses existentes em áreas não contestadas. O vitorioso secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, também experiente estudioso do Direito, visitou a experiência do Projeto Cantagalo em 2009, precedente às UPPs, no morro que leva o mesmo nome. Comparecendo ao primeiro evento de entrega das plantas baixas das 1.485 posses então existentes no Cantagalo, ele assim se pronunciou: “Sei da importância deste documento (a planta baixa). Ele é o início do processo de aquisição da propriedade plena. Representa a segurança civil do cidadão, sem a qual não há segurança pública que dê jeito.”
O que aconteceu depois foi o distanciamento das UPPs da advertência de Beltrame. Não houve, na sequência das UPPs, a proteção à propriedade. Um novo inimigo invisível cercou as UPPs — a burocracia urbanística, que não porta fuzis, mas controla os carimbos de outorga dos documentos de regularização fundiária e das edificações. Regras negociadas com os moradores e adaptadas às condições peculiares de cada comunidade deveriam ter sido pactuadas. Deveria ter ocorrido um mutirão entre comunidades, Estado (Iterj) e, principalmente, a prefeitura do Rio, para assegurar o pleno direito de quem já detém posses nas favelas, respeitando o prazo de comprovação determinado na lei da Minha Casa, Minha Vida, que, a partir do seu artigo 49, trata da titulação de posses irregulares mediante a chamada “usucapião administrativa”. Este passo seguinte nunca existiu, as OPAs (Organização da Propriedade e do Ambiente), que dariam papel decisivo às lideranças e associações comunitárias na integração adaptativa das regras urbanísticas do “asfalto” às condições peculiares da “cidade partida”, a favela.
[su_quote]De fato, só a propriedade legalizada e democratizada é capaz de deflagrar a cidadania efetiva[/su_quote]
Por haver parado no meio do caminho, a ocupação repressora das UPPs foi ficando sem calço, sem amparo na comunidade. Aconteceu, sim, a valorização imobiliária, fruto da sensação inicial de maior segurança e perspectiva de melhor futuro. A verticalização desordenada das habitações, como seria natural prever, aflorou e intensificou-se, ressaltando a ausência do planejamento maior, o do ambiente geral, da melhoria do acesso físico e, para completar, o acesso à cidadania representada pelo nome da rua e número da habitação na porta de cada casa e, sobretudo, o número da matrícula no Registro Geral de Imóveis. Aqui está, como sempre esteve, o nó górdio desta questão. A favela não emerge como parte da cidade formal simplesmente porque… ela não é! E, até que o seja, e isso depende do desenvolvimento acelerado das OPAs, qualquer outra iniciativa se provará frustrante, inclusive os vários programas sociais bem-intencionados, lançados pela prefeitura desde então.
De fato, só a propriedade legalizada e democratizada é capaz de deflagrar a cidadania efetiva, aquela que fortalece a percepção de autoestima, de pertencimento ao lugar e de vontade de defender a integridade do território habitado, em colaboração com os órgãos públicos. Essa é a única maneira de se “colar” definitivamente a cidade partida. A participação comunitária em cada passo da conquista da segurança civil da propriedade, como no Projeto Cantagalo, é imprescindível, tanto na implantação das OPAs como na mobilização das lideranças que construirão o projeto de acesso a esse sonho do cidadão. Uma coisa é certa: não haverá UPP que dê conta da pacificação sem uma OPA correspondente. A valer o vaticínio do secretário Beltrame, a verdadeira definição de segurança pública é a segurança civil e, nesta, o direito à propriedade, tal como dele o usufruímos no “asfalto”.
*Paulo Rabello de Castro, Carlos Augusto Junqueira e Ignez Barreto são diretores do Instituto Atlântico e coordenadores do Projeto Cantagalo.
Fonte: O Globo, 15/02/2015
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