O analista de sistemas carioca Alexander Albuquerque sonhava em abrir uma escola de programação no Complexo da Maré, no Rio.
Ele queria capacitar adolescentes em uma escola do Ensino Médio, mas não existe uma sequer por lá. Foi quando, em janeiro de 2006, um líder comunitário local perguntou se Albuquerque poderia tentar resolver outro problema local, mais crítico: a bancarização.
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Foi o primeiro passo para a fundação do Banco Maré, uma das startups brasileiras que combinam serviços financeiros e tecnologia, as chamadas “fintechs”. Seis meses depois, ele passou a oferecer uma conta para pessoas que viviam à margem dos grandes bancos.
Hoje, mais de 20 mil pessoas possuem uma conta digital no Banco Maré e usam os serviços para comprar itens no comércio local ou pagar contas. Funciona assim: o vendedor insere o valor do produto e gera um código QR no aplicativo (que pode ser escaneado pelo celular).
O cliente clica em pagar na tela do seu celular, lê o código e a transação está feita. Apenas em março deste ano, a empresa movimentou mais de R$ 2 milhões só com pagamentos de boletos. “Antes, as pessoas precisavam se deslocar até o bairro vizinho para isso, pois não há lotéricas ou agências bancárias na comunidade”, diz Albuquerque.
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Hoje, no Brasil, há cerca de 60 milhões de desbancarizados, segundo o último estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse número representa quase metade da população economicamente ativa, estimada em 110 milhões de pessoas. O grupo movimenta R$ 665 bilhões ao ano, mais do que o PIB de países como Chile e Cingapura e está espalhado pelas classes econômicas.
Como muitos negócios da população desbancarizada são informais e a maioria das pessoas das classes B e C não consegue comprovar renda, esse público é negligenciado pela rede bancária tradicional. “Só agora o estigma de que esse mercado não é rentável começa a ser quebrado, até mesmo porque a tecnologia permite que as instituições operem com custos mais baixos”, afirma Bruno Diniz, coordenador do núcleo de fintechs da Associação Brasileira de Startups (ABStartups).
Atualmente, menos de 10% das 350 fintechs que atuam no Brasil olham para quem não tem conta ou acesso aos serviços financeiros básicos. Além do Banco Maré, a startup EasyCredito diz que combina dados buscados no SPC, Serasa, IBGE, Correios, Cartórios, redes sociais, e-mail (tempo de conta ativa), contas telefônicas pré e pós pagas e informações públicas do governo para traçar um perfil do usuário.
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O resultado é que, do total de pedidos de empréstimo recebidos, a startup EasyCredito, que oferece cartão de crédito e empréstimos, aprova 32% deles contra cerca de 10% das instituições tradicionais.
A média de inadimplência das fintechs, porém, é 30% menor do que a dos grandes bancos que, segundo o Banco Central, é de 5%. “A cultura mudou muito”, explica Marcos Ramos, presidente executivo da EasyCredito. “É impensável um cliente chegar em um banco e fornecer sua senha do Facebook ao gerente, mas na internet ele faz isso para fazer login em um serviço.”
Entre os que oferecem crédito a disputa é por quem avalia com mais precisão o perfil do cliente, para reduzir os riscos.
A fintech Avante já levantou R$ 68,5 milhões em três rodadas de investimento para desenvolver um sistema de inteligência artificial capaz de avaliar até mesmo o grau de honestidade do cliente. “Como existem poucos dados disponíveis sobre essas pessoas, o desafio é ter inteligência”, afirma o presidente executivo da empresa, Bernardo Bonjean.
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De 2015 até hoje, a startup emprestou mais de R$ 207 milhões e possui 50 mil usuários ativos em todo o Brasil, sendo que metade está no Nordeste. Os empréstimos médios são de R$ 2,6 mil e a taxa de inadimplência é de 7%. Se os planos derem certo, a Avante pretende promover a inclusão financeira de 1 milhão de pessoas até 2021.
Entrave. A desbancarização não é uma particularidade brasileira. O Banco Mundial calculou, em 2011, que havia 2,5 bilhões de desbancarizados no mundo e 200 milhões de micro e médias empresas sem acesso a serviços financeiros e crédito pelos quais pudessem pagar.
Com a disseminação das fintechs, o Banco Mundial afirma que o número de pessoas sem acesso a serviços bancários caiu para 1,7 bilhão de pessoas.
O desafio, porém, ainda é grande, especialmente por conta dos semibancarizados (quem tem conta, mas nenhum outro serviço financeiro, como empréstimos e investimentos) que somam 6 bilhões de pessoas no mundo.
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“Cada lugar tem sua peculiaridade”, afirma Oliver Cunningham, sócio da consultoria KPMG. Segundo ele, em muitos países africanos, o acesso à internet é o grande desafio. No Brasil, o problema é a questão regulatória, já que até pouco tempo era obrigatório que qualquer serviço financeiro estivesse associado a uma instituição bancária convencional.
Há cerca de um mês, porém, o Conselho Monetário Nacional aprovou resoluções que permitem que fintechs concedam crédito sem a necessidade de intermediação de um banco. Isso permite a essas startups reduzirem ainda mais os custos.
As novas regras deverão atrair ainda mais fintechs para o nicho dos desbancarizados. O Nubank, criado em 2013 e que já recebeu US$ 330 milhões em investimentos, tem planos de nos próximos meses lançar ofertas voltadas especialmente para os desbancarizados. Em entrevista ao Estado, o fundador e presidente executivo, David Vélez, diz que é um movimento natural para o Nubank, que já oferece taxas mais baixas que as dos bancos tradicionais.
“As oportunidades para as fintechs estão por todos os lados porque há muita concentração nos serviços existentes”, diz Vélez. À medida que tirarem dos bancos os clientes insatisfeitos com as altas taxas, as fintechs devem mirar os desbancarizados em países emergentes, como Brasil e México.
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O economista bengalês Muhammad Yunu, que fundou o Grameen Bank e começou emprestando US$ 27 a 42 mulheres em 1983, sabe como o acesso ao crédito reduz a desigualdade. “Em uma pesquisa interna, constatamos que 58% dos que fizeram empréstimos conosco saíram da linha da pobreza”, disse ele – que hoje é considerado o “pai” do microcrédito – durante a premiação do Nobel da Paz, que recebeu em 2006. O que ele provavelmente não sabia é que, com o avanço da tecnologia, ele teria tantos seguidores.
Fonte: “Pequenas Empresas & Grandes Negócios”