Toda vez que olho para a fiação de rua nas grandes cidades brasileiras sinto um calafrio. A quantidade de fios desencapados, gatos e outras gambiarras é um convite para curtos-circuitos. Uma pequena fagulha derruba a rede, provoca incêndios e causa desastres, como a queda de um edifício ocupado por sem-teto no centro de São Paulo, em 2018.
Em sociedades que têm muitos fios desencapados não seria diferente. Na última década assistimos a um vertiginoso crescimento no número de levantes e insurreições, como as ocorridas em Tunísia, Argélia, Egito, Venezuela, Turquia, Armênia, Ucrânia, Tailândia, Hong Kong ou Brasil.
Muitas dessas insurgências tiveram como estopim eventos aparentemente singelos, mas que rapidamente desencadearam fortes ondas de protestos relacionados a problemas estruturais como desigualdade, corrupção, desemprego, má qualidade dos serviços públicos ou arbítrio do Estado, desestabilizando governos, instituições e regimes políticos, mas também provocando fortes retaliações das forças de segurança e recrudescimento autoritário.
Mais de Oscar Vilhena
Custos do Estado de Direito
A indignação
Com apenas uma canetada, Bolsonaro consupurcou legado de Marechal Rondon
O Chile já enfrenta oito dias de fortes protestos. Foi decretado estado de emergência e toque de recolher. Já são 18 mortes no confronto com as forças de segurança, entre os quais uma criança de quatro anos, 295 pessoas feridas e mais de 2.800 pessoas detidas.
Não surpreende que o atual ministro do Interior e da Segurança do Chile, Andres Chadwick, quando jovem, tenha sido nomeado presidente da juventude universitária pelo general Augusto Pinochet.
O gatilho das manifestações foi o aumento de míseros 3,7% na tarifa do metrô, que transporta diariamente um terço dos moradores da capital chilena, hoje com cerca de 7 milhões de habitantes.
A dimensão, violência e dramaticidade dos protestos, que nesta sexta-feira (25) avançaram sobre o Congresso Nacional, em Valparaíso, tem gerado uma enorme perplexidade na comunidade internacional; afinal, o Chile se tornou nas últimas décadas um exemplo de país que promoveu reformas, convergindo para as matrizes econômicas dos países da OCDE.
Seus indicadores sociais e econômicos são mais elevados que os do restante da região e sua democracia também tem se demonstrado bastante estável.
O pacote social proposto pelo governo de Sebastián Piñera não foi capaz de arrefecer o ímpeto dos manifestantes, que mantiveram protestos contra o desemprego, um sistema de previdência social baseado na ideia de capitalização que tem deixado milhares de idosos desassistidos e um modelo de educação caro e pouco inclusivo, entre outras deficiências do sistema de proteção social.
Também protestam contra a desigualdade e um sistema tributário regressivo, em que os ricos pagam muito menos do que seus pares nos demais países da OCDE.
A associação entre fios desencapados e a alta conectividade das novas gerações tem gerado uma enorme capacidade de mobilização da sociedade, com efeitos imprevisíveis sobre o sistema político.
Sem que os países do continente sejam capazes de conceber um modelo de desenvolvimento mais sustentável e inclusivo, que melhore de fato as condições de vida da maioria da população, dificilmente estaremos imunes a insurreições como a de Santiago.
Desnecessário dizer que quase todos os países da região têm mais fios desencapados, gambiarras e puxadinhos políticos e sociais do que o Chile.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 26/10/2019