O bom senso se impôs e a CPI do Cachoeira desistiu de uma disputa vã em torno da convocação do procurador-geral da República Roberto Gurgel, substituindo-a por uma série de perguntas que devem esclarecer oficialmente o mal-entendido sobre o processo contra o senador Demóstenes Torres e suas relações com o mafioso Carlinhos Cachoeira.
Descontando o descontrole emocional do senador Collor de Mello, não parece haver entre os integrantes da CPI posições radicalizadas a ponto de abrir uma guerra com o Ministério Público Federal, e é provável que a pendenga se resolva sem a necessidade de uma disputa judicial entre o Congresso e o Judiciário.
Tudo indica que o procurador-geral agiu de maneira heterodoxa, não seguindo rigorosamente a letra da legislação que manda que em 15 dias o processo seja arquivado, ou novas investigações sejam solicitadas.
Mas o fez de boa-fé, com o objetivo de permitir a continuidade das investigações, que até aquele momento ele considerava insuficientes para fazer provas contra um senador da República.
Diz a subprocuradora Cláudia Marques que não arquivou o caso contra o senador Demóstenes Torres porque o delegado da Polícia Federal pediu mais tempo para investigações, o que é negado oficialmente pela PF.
Esse mal-entendido precisa ser esclarecido, é evidente, mas a primeira reação não pode ser de desconfiança contra a ação do procurador-geral. Se ele estivesse interessado em ajudar o senador Demóstenes Torres, teria arquivado o inquérito por insuficiência de provas.
O que o levou a sobrestar a decisão por três anos se não a vontade de esperar novas investigações, como afirma? O relator da CPI, o petista Odair Cunha, deu o tom do debate ao afirmar: “Não estamos investigando a conduta de qualquer membro do Ministério Público Federal. Nós estamos investigando a organização criminosa criada por Carlos Cachoeira”.
O senador Collor de Mello é um caso à parte nessa CPI. Ele é o mais ativo agente de um setor petista que resolveu usá-la para, no plano imediato, ir à forra contra seus adversários, e criar um clima político de descrédito da imprensa e do Ministério Público com vistas ao julgamento do mensalão.
Interessante é que Lula e o PT foram os principais incentivadores das denúncias contra o então presidente Collor, o que demonstra que a sede de vingança de Collor é seletiva.
Os que estão no poder contam com sua adesão, e sua raiva vai contra a imprensa, que considera responsável por seu impedimento como presidente.
A perseguição ao procurador-geral é um bônus que concede aos mensaleiros. Collor deveria, ao contrário, estar em paz consigo mesmo, pois na prática está conseguindo com a presidente Dilma o que não havia tido com nenhum dos antecessores, uma espécie de anistia de fato.
Ao ser convidado juntamente com os outros expresidentes vivos para a cerimônia de instalação da Comissão da Verdade, assim como já o fora no almoço para o presidente dos Estados Unidos Barack Obama, ele tem restituída sua condição de ex-presidente, o que o próprio Lula não reconheceu quando não o incluiu na comitiva que foi a Roma para os funerais do Papa João Paulo II em 2005.
O ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon, que renunciou para não ser cassado, foi anistiado por seu vice Gerald Ford, mas passou o resto da vida amargando seu gesto.
Afora, portanto, os esgares e caretas de Collor, a CPMI tende a permanecer em fogo brando, porque os governistas já descobriram que não têm força política para transformá-la em outra coisa que não seja uma investigação sobre as atividades do bicheiro e da empreiteira Delta, e suas ramificações por vários estados do país.
Pelos depoimentos dos delegados da Polícia Federal, revelando o conteúdo dos inquéritos, e com os novos documentos e gravações que estão chegando à CPI, está ficando cada vez mais claro o envolvimento de Cachoeira com a empreiteira Delta, o que torna inevitável a convocação do expresidente do grupo, Fernando Cavendish, para um depoimento.
Ainda mais agora, que a nebulosa venda da empreiteira para o grupo do frigorífico JBS coloca em dúvida sua verdadeira intenção.
A verdade é que o mais próximo que já chegamos de um Estado controlado por mafiosos foi esse esquema do Cachoeira, que tinha no bolso do colete senadores, deputados, governadores, prefeitos e vereadores e pensou até em fazer do cúmplice, o senador Demóstenes Torres, ministro do Supremo Tribunal Federal.
Um esquema que precisa ser destrinchado, sem que questões políticas como a tentativa de emparedar o procurador-geral da República ou a imprensa tomem espaço do que realmente conta: o combate à corrupção.
Mas dificilmente sairá do depoimento dos principais envolvidos uma revelação que mude o rumo da investigação.
O governo tem uma maioria defensiva na CPI e conta também com uma coincidência a seu favor em relação aos três principais vetores da investigação.
Os advogados Márcio Thomaz Bastos, de Cachoeira; Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, do senador Demóstenes Torres; e José Luiz de Oliveira, da Delta, têm em comum ligações pessoais e profissionais com importantes membros do governo.
Thomaz Bastos foi ministro da Justiça de Lula e continua sendo seu conselheiro. Kakay é amigo de José Dirceu, de quem José Luiz Oliveira é advogado no mensalão.
Como se vê, só surgindo uma ex-mulher ressentida, ou um ex-marido na mesma situação, um motorista ou uma secretária para essa investigação da CPI ir a algum lugar.
Fonte: O Globo, 16/05/2012
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