Tenho enorme simpatia pelos mais nobres ideais que sempre estiveram por trás de ingênuas correntes da “esquerda” latino-americana. É com esse olhar complacente que acompanho a inevitável degeneração de sistemas políticos “socialistas” e “bolivarianos”, conforme o desenrolar dos eventos recentes em Cuba e na Venezuela.
A exemplo de Fidel Castro, que parece já estar fora do ar há algum tempo, mas é simbolicamente mantido à frente de transição do poder para seu irmão, Raúl Castro, assistimos a um ensaio da transição presidencial venezuelana com o mesmo recurso simbólico à figura de Hugo Chávez. A Constituição do país determina que o candidato eleito deva tomar posse no próximo dia 10, com o juramento à frente da Assembleia Nacional. Mas, por “motivo inesperado”, permite o juramento perante o Supremo Tribunal de Justiça, que teria de dar posse a Chávez em Havana.
Uma alternativa também prevista constitucionalmente prescreve a posse temporária do presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello. Neste caso, o Supremo Tribunal de Justiça, com base em uma avaliação médica, decidirá se o presidente eleito está em condições de exercer o mandato. Ou seja, se a ausência de Chávez é apenas temporária. Se permanente, a Constituição prevê que devam ser convocadas novas eleições.
É hoje evidente que a campanha presidencial de Chávez pecou pela falta de transparência quanto a sua saúde. Sua doença não foi algo inesperado como a diverticulite de Tancredo Neves, em 1985, em que ocorreu dúvida semelhante quanto à posse do vice-presidente José Sarney ou do presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães. Os cubanos já conhecem em detalhes as condições médicas de Hugo Chávez. E, portanto, se o mais provável desenrolar será uma ausência temporária ou permanente.
O que assusta em todo esse episódio é exatamente a falta de transparência, uma medida do enorme apetite pelo poder. Essa mesma gana pelo poder teria levado o vice-presidente Nicolás Maduro a uma proposta inconstitucional de extensão do atual mandato. Sempre à sombra e em nome de Chávez. Pensei que tudo isso estaria tão distante quando, há alguns anos, refletia perplexo, olhos postos no bem preservado corpo de Lenin no mausoléu da Praça Vermelha em frente ao Kremlin.
Fonte: O Globo, 07/01/2013
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