A frase famosa do escritor e pensador inglês do século XVIII Samuel Johnson “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas” volta e meia retorna ao debate quando governantes se utilizam do sentimento patriótico para encobrir seus erros. Parece que chegamos a esse ponto.
A situação está tão caótica que os ministros do governo Dilma já estão apelando até mesmo para o patriotismo dos grevistas na tentativa de reduzir os danos que já estão sendo causados pelo trânsito impossível em São Paulo, devido à greve dos metroviários ontem, e a diversas manifestações nos últimos dias, que prometem se repetir hoje no jogo treino da seleção.
Ganhar a Copa também fora do campo virou mantra das autoridades brasileiras, a começar pela própria presidente Dilma. Infensa a entrevistas, a presidente anda procurando programas de televisão em todos os canais para falar bem da organização da Copa do Mundo, e pedir apoio da população para que tudo corra bem.
Não se cansa de repetir “nosso queridíssimo e saudoso” Nelson Rodrigues para dizer que a seleção é a pátria de chuteiras. Interessante que a hoje presidente renda homenagens a um dos maiores autores brasileiros, mas que sempre foi um reacionário de carteirinha.
Certamente a “guerrilheira” Dilma deveria considerar Nelson Rodrigues um direitista repulsivo, e a citação a ele não passa de ação de marketing para tentar uma aproximação com os torcedores. Nelson era dos que considerava que torcer pela seleção brasileira é um ato de patriotismo, e Dilma, embora tenha confessado que em 1970 torceu pelo Brasil mesmo sem querer, necessariamente pensava de maneira diversa antes de chegar ao poder.
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, mistura política e futebol da mesma maneira que os grevistas oportunistas, que aproveitam a visibilidade do país no mundo para encostar na parede seus empregadores na área estatal.
Quando Cardozo diz que é necessário projetar uma boa imagem do país, está dando a dimensão geopolítica que a organização da Copa do Mundo (e também das Olimpíadas) tem, e que o governo menosprezou, ao dar mais importância a ganhar a Copa do que a realizá- la, na análise correta do secretário-geral da Fifa Jérôme Valcke.
Já o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência, está preocupado com manifestantes e grevistas, que oficialmente são o público- alvo de seu ministério.
É ele o responsável pela ligação com os chamados “movimentos sociais”, que o PT cevou com dinheiro público e tratou com leniência até recentemente, imaginando que eles tivessem o “bom senso” de ajudar o governo numa hora como essa da Copa.
Mas o movimento dos sem-teto, que organiza manifestação em São Paulo para hoje, já ameaçou impedir que os torcedores cheguem ao Itaquerão para ver o jogo treino da seleção brasileira.
Falando em tom quase épico, Gilberto Carvalho pediu “uma trégua cívica” aos grevistas que paralisam serviços essenciais nas cidades-sede dos jogos da Copa.
Ora, quando o governo do ex-presidente Lula decidiu considerar de interesse nacional disputar a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas, pensava-se que se tratava de uma estratégia de política internacional que o governo havia montado para ressaltar a presença do Brasil nos Brics e, em consequência, no mundo.
A seu tempo, também Rússia, China e África do Sul assumiram esse papel. À importância geopolítica da tarefa não correspondeu, porém, à maneira desleixada como ambos os governos petistas trataram a realização dos eventos, e só na undécima hora veem nossas autoridades apelar para o patriotismo do povo brasileiro.
Surpreendentemente, o povo tão amante do futebol está separando a disputa em si dos erros do governo.
O desânimo que se reflete na falta de ruas enfeitadas certamente dará lugar à alegria dentro dos estádios.
Fizeram bem os jogadores e a comissão técnica em evitar uma ligação mais politizada com as autoridades governamentais e políticos de maneira geral.
Uma vitória do Brasil dentro do campo dará uma alegria à população, mas dificilmente fará o ambiente político se desanuviar. Uma derrota no futebol vai exacerbar os ânimos já exaltados. A vitória fora do campo está cada vez mais difícil.
Fonte: O Globo, 6/6/2014
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