“É um dia histórico. Uma mudança de época”, disse o empresário Mauricio Macri, no dia 22, em seu primeiro discurso como presidente eleito da Argentina. A grandiloquência do discurso, típica no país de Perón, do papa Francisco e de Diego Maradona, não é pura retórica desta vez. A vitória de Macri põe fim a 12 anos de dinastia Kirchner, um período de populismo autoritário com congelamento de preços de produtos básicos, manipulação dos índices de inflação e ameaças à liberdade de expressão. Macri dedicou suas primeiras palavras à defesa da democracia, dentro e fora de seu país. Disse que quer excluir do Mercosul a Venezuela, por “descumprir a ordem democrática”, e visitou o Brasil em sua primeira viagem internacional. “Existe espaço para um novo líder regional”, diz o uruguaio Francisco Panizza, especialista em política da América Latina da London School of Economics.
Época – Mauricio Macri defende expulsar a Venezuela do Mercosul por descumprir a ordem democrática. Existe alguma chance de isso acontecer?
Francisco Panizza – Hoje, acho impossível. A expulsão precisa ser decidida por unanimidade, mas o Brasil é contra, bem como o Uruguai. A ameaça certamente põe pressão sobre as eleições parlamentares na Venezuela, no dia 6.
Época – Democracias de esquerda da América Latina hoje relutam em criticar o autoritarismo de regimes populistas. Ao ameaçar a Venezuela, Macri tira Brasil e Uruguai da zona de conforto?
Panizza – Macri dificilmente conseguirá mudar a política externa de Brasil e Uruguai. Os governos dos dois países já têm interesses estabelecidos em relação à Venezuela. O Uruguai tem setores mais dispostos a criticar o autoritarismo, mas mantém vínculos econômicos muito importantes com os venezuelanos. Só uma fraude nas eleições parlamentares de dezembro daria força ao discurso de Macri.
Época – Ao sacudir a harmonia entre países democráticos e autoritários, Macri tenta se impor como líder diplomático na América Latina?
Panizza – Acho muito cedo para dizer. Pelo menos no começo, o presidente Macri vai ter de se dedicar à política interna e à crise econômica da Argentina. Mas existe espaço para um novo líder, no vácuo criado pelo enfraquecimento da “aliança progressista”, formada pelos partidos de esquerda. No vácuo criado sobretudo pelo enfraquecimento da liderança do Brasil. Primeiro, com a saída do presidente Lula. Agora, com os problemas enfrentados pela presidente Dilma. Junta-se a isso a crise econômica da Venezuela. Hoje não existe um líder claro na América Latina, mas é cedo para afirmar que Macri assumirá esse papel. A Argentina tem problemas muito sérios a resolver.
Época – A vitória de Macri na Argentina e a baixa popularidade da presidente Dilma, no Brasil, indicam uma exaustão dos governos de esquerda na América Latina?
Panizza – Vejo este momento político por duas perspectivas. Do lado da ideologia, acho prematuro dizer que a esquerda se exauriu. Apesar de derrotada na Argentina e em crise no Brasil, ela continua razoavelmente firme na Bolívia, no Uruguai e no Equador. Mas é possível afirmar que o equilíbrio de forças mudou entre os partidos de situação e oposição na América Latina.
Época – A crise econômica provocou uma insatisfação com o governante, não importa de qual orientação política, como ocorreu na Europa?
Panizza – Certamente. Com a crise econômica atual, os governos não têm tanto dinheiro para gastar em políticas sociais. A insatisfação fortalece a oposição. Como a maioria dos governos na América do Sul é de centro-esquerda e a oposição é de centro-direita, o enfraquecimento da economia sugere um enfraquecimento das esquerdas. Abriu-se espaço para uma mudança no pêndulo político como o que ocorreu, no sentido contrário, no fim dos anos 1990. A crise econômica mundial de 1998 enfraqueceu governos mais à direita, na América Latina, e abriu espaço para o ciclo atual, mais à esquerda.
Época – Partidos mais à direita dominaram a política latino-americana entre meados de 1995 e 2005. Na década seguinte, viveram um ostracismo. Agora, recuperaram o poder na Argentina e perderam por margem apertada no Brasil. Por que o pêndulo parece oscilar a cada dez anos?
Panizza – Esse pêndulo oscila por uma combinação de fatores, como crises econômicas internas ou externas. O principal fator é a insatisfação dos eleitores. Em 2003, os Kirchners chegaram ao poder na Argentina e o Partido dos Trabalhadores chegou ao poder no Brasil. Com tanto tempo no governo, um grupo de poder, inevitavelmente, desperta descontentamento. Casos de corrupção vêm à tona e torna-se mais difícil satisfazer a população. Um cientista político nos Estados Unidos tem uma frase muito apropriada para o que vemos na América do Sul: “A democracia é um sistema de representação no qual os governos perdem eleições”. Acho que, no conjunto, países como Brasil, Venezuela e Argentina têm partidos que estão no poder há tempo demais. Uma hora isso chega ao fim.
Época – Em sua visão, a alternância de poder na Argentina se deveu à decepção com o peronismo dos partidários de Cristina Kirchner mais do que à confiança num projeto mais liberal de Mauricio Macri?
Panizza – Exatamente. Macri venceu as eleições sem uma oferta muito clara ao eleitor. Na Venezuela está ocorrendo algo parecido: forças políticas muito diferentes entre si estão unidas mais pela rejeição ao governo atual do que pela esperança em algum novo projeto.
Época – Na última década, os governos de esquerda na América do Sul conseguiram formar um bloco, senão uniforme, ao menos harmônico. É possível identificar uma unidade de projeto entre os partidos mais à direita?
Panizza – Sim. Eles não chegam a pregar o neoliberalismo dos anos 1990. Há uma rejeição ao estatismo e à economia mais fechada, característica dos governos à esquerda. Mais essas características ainda são pouco para dar coesão entre grupos muito diferentes entre si. O próprio Macri, durante a campanha, acabou por abandonar algumas ideias mais pró-mercado. Ao dizer que não vai privatizar empresas, deu uma guinada rumo ao centro. Acho que ainda não há um modelo alternativo consolidado.
Época – Macri disse que fará sua primeira viagem oficial ao Brasil. Como o novo presidente pode mudar a hoje fria relação entre os dois países?
Panizza – Talvez o mais positivo seja a possível mudança no funcionamento do Mercosul. A Argentina vinha sendo o maior obstáculo tanto às relações comerciais dentro do bloco, com protecionismo e barreiras comerciais, quanto à possibilidade de tratados de comércio com outros blocos. Em especial, com a União Europeia. Macri pode ajudar o Brasil a adotar uma mudança significativa, em favor de uma maior abertura ao comércio exterior.
Época – Que setores do governo brasileiro ganham força com a vitória de Macri?
Panizza – A eleição de Macri é favorável ao ministro da Fazenda, Joaquim Levy. A reforma buscada por Levy está em linha com os projetos do Uruguai e, agora, da Argentina.
Época – Quanto tempo a Argentina levará para se recuperar política e economicamente dos anos Kirchners?
Panizza – A crise argentina é mais política que econômica. Macri deve desvalorizar a moeda e cortar gastos públicos. A dúvida é se fará isso gradualmente ou num choque. O lado positivo é que o mercado internacional tem boas expectativas sobre o novo governo. O otimismo pode atrair investimentos e tornar a recuperação econômica mais rápida do que seria possível em mais um governo peronista.
Época – Macri pertence a um partido pequeno e ganhou por margem apertada. Qual a chance de termos um governo instável, como os três anteriores a Néstor Kirchner?
Panizza – A maior dificuldade de Macri estará no Senado, ainda dominado por Cristina Kirchner. Mas acredito que ele conseguirá mover as peças do tabuleiro e transformar a aliança eleitoral em aliança de governo. Temos algo muito raro na história argentina: um presidente que chegou ao poder fora dos dois grandes partidos. Teve o apoio de um grande partido, mas não é parte dele. Terá de buscar uma nova forma de fazer política, mais pluralista e menos demonizante. A vitória de Macri ensina à elite política argentina a necessidade de ser mais plural. É como o Brasil do governo Fernando Henrique, que não vinha de um partido dominante e se viu obrigado a fazer um governo de coalizão.
Fonte: Época, 05/12/2015
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