Envolvido no programa nacional de corte de gastos públicos, o governo regional de Madri reduziu o número de carros utilizados pelas autoridades.
Mas ficou com os motoristas. Funcionários públicos, esses motoristas não podem ser demitidos, nem transferidos para outras funções, nem removidos para outras localidades, a menos que aceitem expressamente.
Ninguém topa, pois, sem os carros, o motorista fica “à disposição”, expressão utilizada aqui no Brasil para qualificar a situação do funcionário sem função. A pessoa pode simplesmente descansar, estudar ou arranjar outros serviços no setor privado.
Na verdade, mesmo trabalhando, o funcionário madrilenho pode arranjar outro emprego, pois o expediente no setor público vai das 8 às 15 horas. O servidor também tem direito a três faltas anuais por doença, sem necessidade de apresentar atestado.
Já ouviram falar de coisa parecida aqui no Brasil, não é mesmo? É isso: a concessão de vantagens ao funcionalismo é universal e tão antiga quanto o serviço público. A explicação original para isso faz sentido: o funcionário representa o Estado, exerce funções de controle e intervenção sobre a sociedade civil — colocando na cadeia, regulando a vida das pessoas, cobrando impostos, distribuindo benefícios, fazendo justiça —, de modo que precisa ganhar bem e ter a segurança de que um político ou um governante contrariado não pode colocar um juiz para limpar banheiros, nem demiti-lo sumariamente.
Mas se o juiz ou o fiscal da Receita deve ser estável, isso não vale para todo o pessoal administrativo de apoio. Mas como se vai dessa boa explicação para a estabilidade perpétua de um motorista no governo de Madri ou tirador de cópia xerox no Congresso brasileiro? Por uma combinação perversa de fatores, dos quais o primeiro é a proximidade entre os funcionários e os políticos e governantes para os quais trabalham. Por exemplo: o motorista e a autoridade que conduz. De modo mais amplo, são os parlamentares, políticos eleitos, que aprovam os salários dos funcionários.
Outro fator é que o dinheiro não é dos governantes que concedem as vantagens. É da Viúva e , além disso, controlado pelos próprios interessados, que estão ali de passagem.
Finalmente, tudo isso considerado, o funcionalismo adquire forte capacidade de pressão, mesmo porque não pode ser demitido. Resultado: motoristas estáveis em Madri, ascensoristas e “operadores de copiadora” ganhando mais de R$ 5 mil em Brasília, com estabilidade e inamovibilidade.
Como se faz quando é preciso cortar gastos públicos e reduzir o número de funcionários? Demissões são raríssimas, por restrição legal e dificuldade política. Mas vários governos europeus introduziram regras
restritivas na substituição dos que se aposentam. Por exemplo: de cada dois que se retiram, contrata-se um.
O governo espanhol chegou a anunciar um programa de repor apenas 10% dos que se aposentam, excluindo o pessoal das áreas sociais (médicos, professores, policiais). Faz sentido, mas de novo se abre a possibilidade de enquadrar no essencial o pessoal acessório.
Mas o jeitão da coisa é igual por toda parte, os detalhes mostram situações políticas e culturas diferentes.
Toda a União Europeia está envolvida em programas de ajuste do sistema de previdência pública. Há muitos programas comuns, como a elevação da idade mínima de aposentadoria.
Mas, na França, o governo pla neja elevar a idade de 60 para 62 anos, enquanto a Alemanha já trata de puxar de 65 para 67 anos.
França e Alemanha têm legislação trabalhista que encarece a contratação de mão de obra, prejudicando a competitividade da indústria privada local. Mas, nos últimos anos, sucessivos governos alemães conseguiram quase congelar salários e mesmo, em alguns casos, diminuí-los.
Isso foi uma reação ao movimento de grandes companhias que começavam a transferir fábricas para o Leste Europeu ou para os países emergentes em geral, na busca de custos menores. Diante disso, lideranças políticas e sindicais chegaram a um entendimento para controlar os salários, em troca da manutenção dos empregos.
Funcionou, a indústria exportadora alemã manteve sua competitividade, inclusive dentro da Europa, garantindo enormes superávits comerciais.
Já na França, Nicolas Sarkozy se elegeu com um programa parecido — “colocar o país de volta ao trabalho” — mas logo passou a denunciar o capitalismo selvagem. E reclamar do ajuste dos alemães.
Tudo isso para dizer que não é fácil controlar gasto público, mas é possível, dependendo de ações políticas, liderança e persuasão.
Fonte: Jornal “O Globo” – 24/06/10
Caro Sardenberg,
O senhor foi muito hábil ao apontar o dedo para a cara “feia” do funcionalismo público dos “cabides de emprego”, “dos Aspones” e da coisa toda da velha “repartição”.
Que tal, para fazer jus, e equilibrar a balança (já que na iniciativa privada, assim como no funcionalismo público, temos um lado bom e um lado ruim), escrever sobre os salários exorbitantes dos CEOs das mesmas companhias alemãs que ameaçaram levar as fábricas para “países emergentes” (é eufemismo para ‘largados no mundo’, não?)? Do abismo salarial que a iniciativa privada muitas vezes incentiva (e da qual se vale para existir)? Afinal, a ideia de um “operador de copiadora” que ganha R$ 5 mil no Estado e a de um atendente de lanchonete que ganha R$ 510 na iniciativa privada me parecem igualmente absurdas. Que tal fazer a média?
Cordialmente,
Bruno Guerra (jornalista)