Por Bruno Meyerhof Salama e Vicente Braga*
A atividade financeira está hoje em toda parte, mas o grau de compreensão das suas engrenagens pelo grande público não é uniforme. Em parte, isso se dá apenas por conta de diferenças no grau de exposição: enquanto os bancos estão presentes de maneira ostensiva na vida de todos, as várias outras organizações que compõem o sistema financeiro se fazem notar, no mais das vezes, de forma discreta, especialmente pela mão do noticiário especializado e dos trabalhos de acadêmicos e experts. É de causar certa surpresa, assim, o grau de publicidade que tem ganhado em tempos recentes aquele que por muito tempo talvez tenha sido o mais desconhecido – e por tabela, o menos compreendido – dos atores no sistema financeiro nacional, o Fundo Garantidor de Créditos (FGC).
Vejamos a breve cronologia dos últimos dois anos. De início, muito se falou do caso do Banco Panamericano, ocasião em que o FGC capitaneou uma operação de socorro privado do banco então em estado pré-falimentar. Seguiu-se a indicação do FGC como administrador no Regime Administrativo Especial Temporário (RAET) do Banco Cruzeiro do Sul. Posteriormente, foram noticiadas mudanças no estatuto do fundo. Logo mais, ganharam as páginas dos jornais algumas decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo contrárias ao FGC. Depois falou-se de um suposto conflito de interesses em meio à participação do FGC na gestão do Banco Cruzeiro do Sul, inclusive com afastamento de diretores envolvidos. Adiante, teve-se notícia do bloqueio de valores do FGC em razão de dívidas do Banco Rural com ex-funcionários da Vasp. E, mais recentemente, houve uma ação judicial proposta pelo Metrus (fundo de pensão dos funcionários do Metrô de São Paulo) tomando por fundamento as novas decisões judiciais já mencionadas.
Como compreender a súbita proeminência adquirida pelo FGC? Para responder, é bom recapitular sua trajetória. A ideia de instituir um garantidor de depósitos bancários no Brasil existia desde o início da década de 80, mas o FGC só tomou forma em 1995 quando uma crise bancária de grande potencial sistêmico nos ameaçava. Pelas peculiaridades do momento histórico, o FGC surgiu como uma associação privada, com uma administração totalmente privada e custeada com recursos captados junto à própria indústria bancária. Esse conjunto de características é fato raro na história brasileira, mas bastante positivo por fomentar a autorregulação, diminuir os problemas de risco moral e (em princípio, pelo menos) salvaguardar os pagadores de impostos.
Mesmo tendo sido sua criação objeto de uma Ação de Inconstitucionalidade, e não possuindo na ocasião um patrimônio capaz de lidar com crises de grande magnitude, o FGC contribuiu para restabelecer a confiança no nosso sistema financeiro e sobreviveu à transição pós-Plano Real. Posteriormente conseguiu pagar todos os empréstimos que necessitou fazer junto ao Banco Central, e teve sua constitucionalidade assegurada em 2004. Desde então, o FGC fortaleceu consideravelmente suas reservas, pôde diminuir pela metade o percentual das contribuições dos bancos, foi eleito o garantidor de depósitos do ano de 2007 pela Associação Internacional e Garantidores de Depósitos (IADI) e teve um papel muito elogiado na crise de 2008. Os bons resultados dessa última experiência, inclusive, contribuíram para que o FGC seguisse a tendência internacional de expansão de mandato, deixando de apenas pagar depositantes de bancos em regime especial para cada vez mais exercer um papel pró-ativo e voltado tanto a atuar nos bancos em regimes especiais quanto evitar que esses sejam decretados.
Tendo essa trajetória contribuído para o aumento da importância do FGC na rede de proteção do sistema financeiro, temos que, com as notícias recentemente veiculadas envolvendo o fundo, duas percepções parecem ter se disseminado. A primeira é uma percepção de força, baseada no fato do FGC ter constituído um patrimônio de aproximadamente R$ 30 bilhões, bastante vultoso até em comparação com outros garantidores ao redor do mundo. A segunda sendo uma percepção de vulnerabilidade, baseada em mudanças de entendimentos judiciais e na redução da confiança geral em sua boa gestão e idoneidade.
A percepção combinada de capacidade econômica com vulnerabilidade jurídica e administrativa parece estar ensejando diversas ações e teses judiciais visando alcançar o patrimônio do FGC. Desses novos litígios, merece destaque a tese defendida no caso do Banco Rural, que busca atribuir às contribuições feitas ao FGC pelo Banco Rural caráter de investimento, pelo que tais contribuições seriam penhoráveis visando à satisfação de créditos trabalhistas. O fato do Tribunal Superior do Trabalho ter mantido uma liminar nesse sentido e o FGC ter sido obrigado a recorrer ao Supremo Tribunal para o desbloqueio dos valores é de causar espanto. Imputar às contribuições obrigatórias feitas ao FGC caráter de investimento não só ignora a função de interesse público exercida pelo FGC na rede de segurança do sistema financeiro, como tem consequências muito perniciosas para o garantidor e a sua função de proteger a economia popular e evitar corridas bancárias.
Também merecem destaque algumas ações judiciais questionando a atuação do FGC no RAET do Banco Cruzeiro do Sul. Essas poderão ser vistas de duas formas. Caso se prove a ocorrência de irregularidades – e elas ainda não estão provadas – então estaremos diante de um problema de imoralidade e de ineficiência no próprio FGC. Mas caso nada se prove, então estaremos diante de sensacionalismo jornalístico e oportunismo no Judiciário – e é isso que o FGC tem alegado em sua defesa.
De toda forma, todos esses litígios sugerem fraquezas do ambiente institucional brasileiro, ainda que por motivos diversos. A implicação, altamente indesejável, pode ser a de que um país com instituições formais e informais pouco sólidas não estaria apto a ter um garantidor de depósitos com uma atuação ampliada – atuação essa que tem sido positivamente avaliada por organizações internacionais como o Comitê de Estabilidade Financeira (FSB) e implementada com bons resultados por outros sistemas de garantia de depósitos mundo afora, inclusive nos Estados Unidos, Alemanha, Canadá e Coréia do Sul. Seja como for, é certo que mesmo exercendo uma função de grande interesse público – e o fazendo com recursos da própria indústria – o FGC se encontra acuado por dificuldades do ambiente institucional brasileiro. A esperança democrática é a de que quanto mais exposta e mais conhecida, tanto mais compreendida e aperfeiçoável será uma instituição. Resta saber se no sistema financeiro essa lógica também será demonstrável.
*Vicente Braga é mestrando da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e bolsista da Fapesp.
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