Criado há quatro anos para receber os ganhos da União com a exploração do pré-sal e depois repassá-los para as áreas de saúde e educação, o Fundo Social sequer foi regulamentado e tem servido para engordar o superávit fiscal primário (economia para o pagamento de juros da dívida pública). Segundo a legislação, o governo deveria aplicar o dinheiro do Fundo, que hoje já chega a R$ 1,947 bilhão, e destinar esses rendimentos à área social. No entanto, diante da falta de interesse do Palácio do Planalto em regulamentar o Fundo Social, o governo ainda não definiu uma política de investimentos para os recursos já depositados. Assim, o dinheiro está parado na conta única do Tesouro.
A lei que rege o Fundo Social, além de determinar que seus rendimentos sejam destinados a saúde e educação, também prevê que o equivalente à metade do patrimônio do fundo tenha essa finalidade. Neste caso, o Tesouro executa os gastos. Segundo o secretário Arno Augustin, já foram repassados R$ 704 milhões nos últimos quatro anos a essas áreas.
— Parte das receitas da exploração do petróleo está indo para a área social — disse ao GLOBO.
Tesouro diz que rendimento é pequeno
Na época da criação do Fundo Social, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a dizer que o pré-sal era uma “dádiva de Deus” e que a aplicação dos recursos na área social seria uma forma de afastar o Brasil da “maldição do petróleo”, que mantém pobres as populações de países ricos nessas reservas.
— O Fundo vem lá de 2010, quando o presidente Lula vendia a euforia do pré-sal. Mas o processo tem sido lento. Tanto que o primeiro leilão de um campo do pré-sal no novo formato de exploração (de Libra) só ocorreu no ano passado — lembrou o diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (Cbie), Adriano Pires.
Para o economista José Roberto Afonso, pesquisador do Ibre-FGV, os ganhos do pré-sal acabaram entrando na estratégia da equipe econômica de “entesourar” recursos que têm uma destinação específica para conseguir fechar suas contas:
— Cada vez mais, os gestores adotam como prática deixar de gastar com a finalidade para a qual se arrecadou. O governo aumenta o caixa e transfere as receitas de uma finalidade para outra, que é gerar superávit primário — ressaltou Afonso.
Sobre a aplicação financeira do Fundo Social, o secretário do Tesouro argumentou que há tempo para se tratar do assunto. Segundo ele, o Fundo ainda tem uma receita relativamente pequena e, portanto, o rendimento decorrente dessas aplicações também não é tão elevado:
— A regulamentação do Fundo Social é um ato necessário no seu devido tempo. Nessa fase inicial, esse recurso é para ficar onde está. É um recurso para o futuro.
O especialista da FGV lembra que o dinheiro do Fundo Social não é o único a ajudar no superávit fiscal. A equipe econômica também segura boa parte do que arrecada com diversas taxas que são carimbadas. Um exemplo disso é a Contribuição para Desenvolvimento da Indústria do Cinema Nacional (Condecine), tributo destinado ao Fundo Setorial de Audiovisual. No ano passado, por exemplo, essa contribuição rendeu R$ 807 milhões, mas apenas R$ 132 milhões, ou 16,35% do total foram destinados a esse fim. Ou seja, 84% ficaram na conta única do Tesouro para reforçar o resultado fiscal.
Outro exemplo vem do Fundo de Fiscalização de Telecomunicações. No ano passado, a arrecadação foi de R$ 4,89 bilhões, mas apenas R$ 3 bilhões, ou 61,35% foram gastos com o devido fim. Outros 38% foram para o reforço do superávit primário.
Os recursos do Fundo Social tendem a ir pelo mesmo caminho. Embora a parcela da União na exploração do pré-sal ainda seja relativamente pequena, a tendência nos próximos anos é que a receita aumente, assim como o entesouramento.
Para Afonso, o uso de receitas carimbadas para o fechamento das contas públicas não pode ser visto como uma manobra, como as que a equipe econômica usou nos últimos anos para alcançar o superávit primário. Mas ele destaca que isso é ruim do ponto de vista das contas públicas, pois o governo acaba ficando com um caixa elevado, mas na verdade não tem liberdade para gastar.
— Contribuições, taxas e outras receitas são cobradas sob um pretexto, mas não são aplicados em tais funções e, como não podem ir para outras, ficam sendo acumuladas no caixa por anos e décadas — afirma ele.
— Isso não seria um pecado se não fosse uma coisa recorrente. O problema do Brasil não é o resultado fiscal em si, mas a forma que tem sido feito nos últimos anos, porque as manobras para aumentar o superávit fragilizam a percepção que se tem das contas públicas — avalia o economista-chefe da corretora Gradual, André Perfeito.
Sobre o entesouramento de receitas carimbadas, o secretário do Tesouro afirmou que isso se torna necessário para a realização do superávit primário. Segundo Arno Augustin, os críticos que sugerem que esses recursos sejam gastos integralmente estão defendendo que a equipe econômica não cumpra as metas fiscais:
— Isso é o mesmo que dizer que eu não devo cumprir a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que não devo fazer o (superávit) primário. Se as pessoas que dizem isso são de fato analistas e técnicos, deveriam saber que o primário tem como fonte essas receitas (carimbadas) — disse Augustin.
‘MOSTRA A FRAGILIDADE DA POLÍTICA FISCAL’
Para o especialista em contas públicas da consultoria Tendências Felipe Salto, se apropriar de receitas carimbadas é mais um artifício para inflar a contabilidade do governo:
— É diferente, mas é igualmente perigoso, porque mostra a fragilidade da política fiscal. O compromisso é zero.
Pessimista, Salto aposta que a meta de economizar 1,9% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto de bens e serviços produzidos no país) este ano não será atingida apesar do que chama de “contabilidade criativa”. Segundo ele, nem mesmo essas medidas “caça-níqueis” garantirão o objetivo. No entanto, o economista lembra que a maior arma do governo não é reter receitas, mas usar seu poder de fogo para inflar os bancos públicos e receber dividendos, apesar de aumentar o endividamento do país.
Embora não seja uma manobra, o uso das receitas carimbadas tem vindo a calhar para a equipe econômica. Com a arrecadação prejudicada pelo baixo crescimento econômico e com despesas elevadas, o governo tem tido dificuldades para realizar o superávit primário. Este ano, por exemplo, a meta fiscal corresponde a R$ 99 bilhões (1,9% do PIB). Nos últimos 12 meses, essa poupança está em R$ 92,8 bilhões, ou 1,87% do PIB.
Fonte: O Globo.
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