A goleada que o Brasil sofreu na partida com a Alemanha evidenciou, de forma inesquecivelmente trágica, a decadência do futebol brasileiro, como resultado de um processo iniciado há muito tempo. Não se trata apenas de um revés esportivo. Essa hecatombe repercute sobre o ânimo da sociedade brasileira, considerada a dimensão cultural do futebol neste país.
Sobre o tema muito se escreveu. Para citar dois intelectuais não envolvidos diretamente com a crônica esportiva, destaco as brilhantes análises do escritor peruano Mário Vargas Llosa, prêmio Nobel de literatura (“A Máscara do Gigante”, Estadão de 27.07.2014) e do poeta Affonso Romano de Sant’Anna (“Futebol e Cultura”, FSP de 22.07.2014).
Seria proveitoso fazer uma reflexão cuidadosa sobre os problemas do futebol brasileiro e, a partir daí, encaminhar as soluções adequadas, da mesma forma que fez a Alemanha quando do insucesso na Copa de 2006, realizada naquele país.
Qualquer que seja o encaminhamento entendo que são indispensáveis a reestruturação das agremiações esportivas e o retorno dos torcedores aos estádios. Não há bom futebol sem clubes fortes e sem torcida.
No Congresso Nacional, está em discussão projeto que promove mudanças na legislação esportiva. No cerne dos debates está a enorme dívida fiscal dos clubes de futebol, para qual se aventa a possibilidade de um longo parcelamento.
Parcelamento de débitos é prática comum às administrações fiscais em todo mundo, como de resto acontece com dívidas bancárias, comerciais e pessoais. No Brasil, é expressamente previsto no Código Tributário Nacional (CTN).
Usualmente, os parcelamentos são de curto prazo. Nos últimos anos, entretanto, foram concedidos, com impressionante frequência, parcelamentos de longo prazo, cujos beneficiários costumam reincidir na inadimplência, tão logo alcançados os objetivos colimados com a certidão de débitos positiva com efeitos negativos (participação em licitações públicas, contratação com o setor público, etc.). Essa inadimplência tem inúmeras causas, mas, não raro, da incompatibilidade entre o valor da parcela e a capacidade de pagamento do devedor.
A combinação de parcelamentos com anistia e remissão configura um procedimento deplorável, extremamente desrespeitoso com os contribuintes que cumpriram regularmente suas obrigações. A despeito de previstas na legislação, a anistia e a remissão somente devem ser admitidas em situações excepcionais.
Na grande maioria dos casos, a dívida fiscal dos clubes de futebol, em condições normais, é impagável. Parcelamento, contudo, não é a solução. Como assegurar, qualquer que seja o prazo do parcelamento, que o valor da parcela é, ao longo do tempo, compatível com a capacidade de pagamento, especialmente quando se considera a desordem financeira, administrativa e fiscal dos clubes de futebol?
O pagamento só será viável com a completa reestruturação dessas agremiações. Para isso se exige tempo. A solução adequada, nesse caso, é uma moratória por prazo curto (dois ou três anos).
Esse instituto suspende a exigibilidade do crédito tributário, podendo condicionar a concessão à observância de determinados requisitos. No caso, o requisito essencial seria o imediato ingresso em um regime especial administrativo e fiscal das agremiações esportivas.
O núcleo do regime seria a constituição de sociedades empresariais de capital aberto, cujo principal acionista, ao menos no início, seria a atual agremiação esportiva, que transferiria para aquelas seus bens e direitos, a título de integralização de capital, assim como seus débitos de qualquer natureza.
Além disso, as sociedades empresariais se obrigariam ao pagamento regular dos seus empregados, FGTS, encargos trabalhistas e previdenciários, sendo isentos os demais tributos, enquanto perdurar a moratória. Essa exigência ficaria sujeita a regras claras de transparência e a programas sistemáticos de fiscalização pelos órgãos especializados.
Os dirigentes, por sua vez, teriam responsabilidade solidária no tocante a infrações e dívidas das sociedades empresariais.
Em relação à dívida fiscal, poderiam ser deduzidos gastos com formação dos atletas e preparadores técnicos (inclusive educação formal), construção de centros de treinamento, promoção de esportes olímpicos e de futebol feminino, aquisição de equipamentos vinculados à fisioterapia e medicina esportivas, etc.
Seriam extintos os direitos econômicos sobre os atletas, remanescendo os direitos federativos que teriam efeitos também econômicos. A participação de capitais privados dar-se-ia tão somente por meio de participação acionária nas sociedades empresariais. Desse modo, seria eliminado o que hoje faz a fortuna dos empresários e investidores e a ruína do futebol brasileiro
No que concerne ao retorno das torcidas aos estádios, a constituição de agremiações sólidas e com capacidade para constituir boas equipes já seria em si um grande estímulo, porém é indispensável que se promova a interdição das chamadas torcidas organizadas, qualificáveis quase sempre como associações criminosa.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 7/8/2014
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