O sonho de todo parlamentar é tornar o orçamento público impositivo. Ou seja, ter condições de garantir que as verbas inseridas na peça orçamentária de interesse de sua comunidade sejam efetivamente desembolsadas pelo Executivo. Nessa linha, o artigo do presidente da Câmara Federal na “Folha de S. Paulo” de 14/4 saiu em defesa da PEC que procura tornar o orçamento público brasileiro impositivo.
Como os congressistas sabem, e não fazem alarde disso junto aos eleitores, na prática há um jogo de faz-de-conta com o orçamento. O Congresso emenda a proposta do Executivo em favor de seus interesses, e informa a seus representados que fez sua parte. O Executivo pode vetar alguma coisa, mas em geral aceita que se desfigure a proposta original, adiando a solução do assunto para o processo de execução.
A praxe, de fato, é o orçamento voltar do Congresso para a sanção presidencial bastante inchado de verbas. Para isso, aproveita-se a brecha na Constituição que permite aumentar o gasto original com base numa nova estimativa das receitas, devido a “erros e omissões”. Como não há a obrigatoriedade de executar o valor total do gasto revisto pelo Congresso, o Executivo “contigencia”, isto é, corta o orçamento por decreto no início do ano a que se refere e vai liberando a minoritária parcela discricionária dos gastos à medida das pressões e dos interesses políticos ao longo do ano.
Só que não adianta o Congresso impor um orçamento com limites ampliados ao Executivo, nem serem proibidas re-estimativas de receita. Na raiz do problema está o excesso de rigidez do orçamento, que é basicamente “obrigatório”, ou seja, composto de gastos que o Executivo é obrigado a realizar ou não consegue reduzir em função de disposições constitucionais e legais.
A área de seguridade social (previdência, assistência social e saúde) apresenta abundantes casos de despesas obrigatórias. Temos, em primeiro lugar, a determinação constitucional de que nenhum benefício previdenciário terá valor inferior a um salário mínimo, que hoje, em adição, aumenta junto com o Produto Interno Bruto (PIB). O caso mais conhecido é o das aposentadorias de trabalhadores rurais que, na maioria dos casos, não foi precedida por contribuições.
Outro caso clássico de despesa obrigatória é o do chamado Benefício de Prestação Continuada (BPC). A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), regulamentando o art. 203 da Constituição, instituiu o pagamento de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e, atualmente, ao idoso com 65 anos ou mais que viva em família cuja renda mensal per capita seja inferior a um quarto do salário mínimo. Esse é um tipo de despesa que, uma vez estabelecidas as regras, o governo é forçado a pagar benefícios a todas as pessoas que conseguirem se enquadrar nos critérios de concessão. Não há como contingenciar os recursos relativos a tais pagamentos, sob pena de se criar um passivo que pode ser exigido na Justiça por aqueles que, tendo direito legal, não receberam o pagamento por força do contingenciamento da verba.
Ainda na área da assistência social podem-se destacar outros benefícios não contingenciáveis do tipo “pague-se a todos que têm direito”, tais como o seguro-desemprego e o abono salarial. O seguro-desemprego atende aos trabalhadores do setor formal que perderam seus empregos, pagando-lhes valores proporcionais aos salários dos últimos três meses trabalhados. O abono salarial é pago a empregados do setor formal que recebem até dois salários mínimos médios por mês e, como outros programas acima descritos, também tem seu valor atrelado ao salário-mínimo.
Na área da saúde deve-se destacar a inovação trazida pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000, que determinou que, a cada ano, os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de saúde devem ser corrigidos pela variação do PIB.
Isso significa que se o país decidir reduzir, ao longo dos próximos anos, a relação entre carga tributária e PIB, a área de saúde irá consumir parcelas crescentes dos recursos públicos, dificultando a adequação da despesa à menor carga tributária.
Além disso, períodos de expansão mais pronunciada do PIB, como os anos de 2004 e 2005, injetarão significativos recursos adicionais na área da saúde, estimulando a ampliação de serviços, enquanto momentos de recessão cortarão fundos e impedirão a continuidade dos serviços implantados nos momentos de bonança, o que provavelmente resultará em descontinuidade e desperdício de recursos.
Fora da área de seguridade social também há despesas obrigatórias. Os poderes Legislativo e Judiciário, bem como o Ministério Público, gozam de autonomia orçamentária e estão protegidos contra contingenciamento de verbas. A Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir) criou uma compensação financeira paga pela União aos estados e municípios em função da desoneração tributária das exportações. Existem também subsídios creditícios não contingenciáveis.
A despesa de pessoal apresenta algumas características similares às despesas obrigatórias. Ela é rígida no curto prazo, porque o governo precisa pagar salários mês a mês e sofre restrições legais à demissão de servidores públicos. Todavia, é possível reprimir essa despesa, no curto prazo, por meio de reajustes salariais ao funcionalismo abaixo da inflação (o que não é possível fazer, por exemplo, com os benefícios sociais atrelados ao salário-mínimo).
Assim, o volume de verbas que sobra para a barganha Executivo-Congresso é muito inferior ao que se imagina. Só para dar um exemplo, o principal item do gasto discricionário, os investimentos, fica hoje abaixo de 6% do gasto federal, e onde o principal ministério, o de Transportes, vive à míngua de verbas desde os anos 80.
Em suma, a questão não é mudar o jeito do orçamento, mas reduzir a obrigatoriedade dos gastos e o crescimento dos gastos correntes.
Fonte: Valor Econômico, 06/05/2013
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