Desde que o prefeito de São Paulo, João Doria, anunciou em março a privatização dos 107 parques da capital paulista, o debate sobre a quem deveria caber a gestão dessas áreas versus melhoria dos serviços dividiu opiniões. De um lado, há quem defenda a gestão privada como forma de melhorar os serviços e, em oposição, os que acreditam que a população perderia espaço ou acesso. E há quem fique no meio, mas não em cima do muro.
“A falta de recursos para cuidar das áreas verdes é estrutural, você vê nos outros países. É possível trazer engenhosidade que vai além dos servidores públicos”, afirma Fernando Pieroni, diretor-executivo do Instituto Semeia, organização sem fins lucrativos que fomenta iniciativas ligadas à melhoria dos parques brasileiros como espaço público. “Que mal tem eu criar um serviço que hoje não está acessível e ainda é superavitário ao ponto de melhorar o banheiro que todo mundo usa?”
A discussão não é de agora e se estende por território nacional. A maioria dos parques brasileiros enfrenta dificuldades para se manter — agravadas ainda mais pela falta de caixa dos governos estaduais, que se apertam até para pagar salários de servidores. O Brasil possui 326 unidades de conservação (UC) federais classificadas em 12 categorias e que representam 9% do território nacional. Uma parte dessas UCs é destinada apenas para pesquisa. E há os parques, que somam 26 milhões de hectares e recebem oito milhões de visitantes por ano. Dos 72 parques nacionais, quatro possuem contratos de concessão: Iguaçu, Tijuca, Fernando de Noronha e Serra dos Órgãos. Esse número pode e deve crescer a partir deste ano, mas ainda esbarra em legislações e na visão da expressão “exploração”, que tanto pode significar “especulação, abuso” como “uso para determinado fim”.
“Parque fechado não é parque protegido, é parque abandonado”, diz Pieroni. “Alguém vai entrar lá, seja o palmiteiro ou o caçador. Enquanto que se você tem um parque aberto, com acesso das pessoas, elas vão enxergar aquele lugar como patrimônio delas”. Para ele, há várias possibilidades de ampliar o uso dos parques, que trariam ganhos à população.
A questão de privatização dos parques é bastante polarizada. É fácil imaginar o interesse de uma grande empresa por um parque como o Ibirapuera, mas difícil ver alguém interessado em cuidar do parquinho da periferia. Há uma solução que seja boa para a população, para os parques e para as empresas?
Primeiramente, essa expressão — a privatização — que até o prefeito usou, é um conceito que gera muita confusão. Um ponto importante e que está se falando ali é de concessões, de parcerias, em momento algum a ideia é fazer uma alienação desses espaços. Ninguém vai vender um empreendimento imobiliário e construir prédio onde antes existia um parque. O parque continua sendo público, por meio de um contrato, a prefeitura deve trazer um “síndico” para cuidar do bem público, sob diretrizes estabelecidas pelo poder público. É esse síndico que vai cuidar do parque.
Quando falamos em cuidar, estamos falando em quê?
Em desenvolver aparelhos, atividades e serviços, até para que se tenha a possibilidade de geração de receita para oferecer o melhor serviço para a sociedade — uma equação que também seja interessante do ponto de vista privado. Afinal é uma modalidade de parceria público-privada e só há interesse na parceria se for bom para os dois lados. É o jogo do ganha-ganha-ganha: ganha o governo porque consegue prover melhor os serviços, ganha a sociedade que consegue ter melhores opções de lazer e ganha o privado, que está no papel legítimo como parceiro do governo. Esses três pilares têm que fazer parte da equação. Se um desses pilares furar, então não é uma parceria bacana.
Mas nem todos os parques têm essa atração…
Você tem possibilidades, por exemplo, de pegar um parque que tem um potencial muito grande e trazer consigo um parque de menor potencial e colocar tudo no mesmo pacote. No nosso economês, é o que se chama de subsídio cruzado, é ter nesse pacote o máximo de benefícios gerados para a sociedade, ou seja, mais parques provendo bons serviços para a população. Como a gente chega nessa equação? Só fazendo as contas.
Eu vou te dar um exemplo em outra área, de um projeto que fiz quando trabalhei na prefeitura, que era de garagens subterrâneas. Tinha uma garagem na Praça Roosevelt, que era altamente rentável porque já tinha investimento feito. Tinha uma outra que ficava mais ou menos no limite, debaixo do Mercado Municipal, e tinha outra que ficava na Praça Fernando Costa, que tinha baixa rentabilidade. Se cada uma fosse oferecida de maneira isolada, a da Fernando Costa não atrairia interessados. Se eu colocasse a Fernando Costa junto com o Mercado Municipal, como ele estava muito no limite, tornaria o pacote inviável. Por outro lado, eu tinha outra garagem que era muito rentável. Qual foi a solução? Colocar as três juntas porque o conjunto da obra é o que proporciona a maior quantidade de equipamentos públicos e ainda assim é rentável. Para isso foi feito estudo de demanda, ver encargos. Com os parques poderia ser a mesma coisa. Mas esse não é o único modelo.
Quais são os outros?
É possível fazer parcerias com associações da sociedade civil em que se tenha entidades que conseguem angariar recursos para a construção e manutenção de equipamentos, além da provisão de serviços dentro dos parques. Isso não requer recursos públicos e também não tem essa lógica econômica, de que o serviço está associado a uma receita para fazer a conta parar de pé. Me veio na cabeça agora o Central Park, em Nova York, como um exemplo. Num dado momento, havia uma entidade que desenvolvia e operava equipamentos em nome do poder público. E quem pagava era a sociedade, que via benefícios naquilo. Tem outros tipos de modelo, como o Business Improvement Districts, em que se cria uma taxa local, que a sociedade do entorno está disposta a pagar, já que se beneficia do espaço e das melhorias, com recursos geridos por uma entidade do terceiro setor para garantir que sejam aplicados da melhor maneira possível. Tudo isso para dizer que é preciso olhar a realidade de cada parque e montar, quase como um quebra-cabeças, o modelo que será adotado. E para isso é essencial ter estudos e diálogos.
Você citou o Central Park, que foi exatamente o exemplo usado pelo prefeito João Doria para defender as privatizações. Na busca por tornar o projeto mais atraente para as empresas, há o risco de que a população saia perdendo?
É para isso que o poder público estabelece restrições, regulamentos que seguem a legislação. Eu acho que muita gente tem essa visão negativa, como se o privado fosse algo ruim. Eu acredito no jogo do ganha-ganha. Veja um exemplo: existe um parque em Cingapura que tem um ateliê e uma escola de pintura, com fila de espera de dois meses para o curso. Isso não existe em nenhum parque no Brasil. Que mal tem eu criar um serviço que hoje não está acessível no parque, criando algo novo e benéfico, e que ainda é superavitário ao ponto de melhorar o banheiro que todo mundo usa? Eu posso oferecer algo que vai prover mais e melhores serviços. Com isso posso ter um governo com contas desoneradas, uma sociedade com opção de mais e melhores serviços, muito mais feliz em utilizar os parques, e posso ter o privado que está cumprindo com seu objetivo de ganhar dinheiro. Evidentemente que você deve ter todos os cuidados ao modelar o projeto, garantir que não haja um excesso de rentabilidade do privado e nem que a rentabilidade fique aquém, para não ter um leilão vazio. E, mais importante, não pode ter um projeto que não dialogue com a sociedade, que não capture os desejos de quem frequenta esse local — para não ter uma coisa desconectada. O processo de diálogo é fundamental para entender que concessões, parcerias, tal, não são privatização, e que não se pode ter essa visão maniqueísta de que o ganho de um necessariamente representa a perda do outro. Todo mundo pode ganhar com isso.
Durante o evento Parques do Brasil, promovido pelo Instituto Semeia, qual foi a grande preocupação em relação aos parques brasileiros?
Existe um problema que é a falta estrutural de recursos. E sem recurso é difícil gerir o parque. De maneira geral, há um problema fiscal muito sério no país. E quando não tem um problema fiscal, educação, saúde, outros setores acabam sendo privilegiados nas prioridades do poder público. E isso não é uma questão só no Brasil, aqui no Brasil talvez a crise fiscal seja mais forte. Outra questão que a gente conversa com os gestores de parques é a questão dos planos de manejo, que são restritivos. Planos de manejo que seguem uma lógica de que para preservar, o homem tem que ficar o mais longe possível. No Brasil temos um gestor para cuidar de uma área equivalente a 117 Ibirapueras. E o que vai acontecer?
Ele não vai dar conta.
Parque fechado não é parque protegido, é parque abandonado. Alguém vai estar lá dentro. Ou vão ser os palmiteiros, os caçadores, alguém vai estar ali. Então, por que não ter a sociedade se apropriando daquilo, enxergando que é seu patrimônio e, portanto, é preciso cuidar? Para isso eu tenho que ter planos de manejo que permitam que a sociedade entre e tenha uma vivência no local. Eu fui visitar o parque Yellowstone, nos Estados Unidos, no ano passado. Lá tem espaços que são muito movimentados, com pavimentação, que permitem até uma mãe com carrinho de bebê chegar perto dos geisers. À medida que você vai se aprofundando mais, o visitante percebe uma gradação da experiência, até um momento em que tem uma plaquinha que diz que a partir dali você tem que ter cuidado, que é bom que você esteja com seu spray contra ursos, que ao se deparar com algum animal, o problema é seu. Ou seja, existe um zoneamento de maneira que você possa ter, dentro do parque, desde aquele velhinho que quase não consegue caminhar, mas quer ter contato com o parque, aqueles que buscam uma experiência mais radical, até áreas em que não pode entrar porque é uma questão da preservação de uma espécie.
Os nossos planos de manejo precisam prever isso. É o que a gente chama aqui de segmentação e zoneamento. Segmentação para entender que há diversos segmentos de possibilidades de uso, e um zoneamento para fazer com que esses diversos segmentos do parque sejam conciliáveis, convivam de maneira harmônica com a ideia de conservação.
Pelo visto, ainda terão de se passar muitos anos antes que possamos ter um parque público brasileiro nos moldes de Inhotim, atraindo milhares de turistas com uma proposta inovadora e, ao mesmo, dispensando recursos para a conservação.
Gestores públicos que inovam são heróis. Eu já estive do lado público. A primeira pergunta que vem é: alguém já fez isso em algum lugar? Porque amanhã o Ministério Público ou o Tribunal de Contas podem questionar sua decisão. É muito mais fácil fazer aquilo que outros dez lugares já fizeram antes de você. A própria lógica faz com que a gente olhe o futuro, espiando pelo retrovisor. O gestor público vai se sentir muito mais confortável, do que ser questionando “por que você fez isso?”, “quais suas intenções?”, quase como se fosse culpado até que se prove o contrário. O incentivo que você tem é para inovar só um pouquinho ou talvez não inovar. Você pode até fazer projetos disruptivos, mas já sabendo que vai expor sua reputação.
Ou seja, alguém com mentalidade de startup não passa na porta. E se tivermos uma grande empresa adotando um parque, dá mais certo?
Não precisa ser necessariamente uma grande empresa, também podem ser pequenas entidades. No momento em que se faz o contrato e o poder público estabelece suas regras, é possível trazer um “síndico” para pensar a melhor maneira de fazer isso. E ao fazer isso, trazemos toda uma flexibilidade privada para pensar esse espaço público. Evidentemente que se eu colocar nesse contrato todas as restrições possíveis e imagináveis, ele vai ficar com as mãos amarradas. Agora, se eu puder dizer: parceiro, as coisas X, Y e Z você não poder fazer de maneira alguma; as coisas A, B e C você vai fazer porque é do meu interesse público e você vai ter que usar parte do recurso que arrecadar; e existe uma coisa no meio do caminho, que não é nem proibida, nem obrigatória, em que se você pode usar sua engenhosidade para trazer o que é bacana de fazer naquele parque. Essa flexibilidade que é bacana e faz com que as parcerias sejam uma oportunidade de aprimorar a gestão dos parques, de prover mais e melhores serviços e, de repente, fazer até o ateliê do parque de Cingapura.
Fonte: “Época negócios”, 24 de abril de 2017.
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