* Por Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli
Causou surpresa na academia, pelo menos entre os economistas, o protagonismo dado ao tema Globalismo nos primeiros dias do governo Bolsonaro. A questão é considerada irrelevante nos meios acadêmicos, sobretudo diante da falta de evidências empíricas que suportem a tese. Mais que uma doutrina, o “anti-globalismo” é uma ideologia conspiratória da direita populista que possui pouca, senão nenhuma, contrapartida nos dados e fatos. E ainda assim, tem enorme influência em setores importantes do atual governo.
Dada a confusão de conceitos, uma apresentação clara do Globalismo não é tarefa fácil. Segundo seus opositores, o Globalismo não seria apenas uma ideologia, mas um esquema de dominação global. O objetivo último seria impor valores esquerdistas, uma moral secular e ateia aos diferentes países, substituindo assim seus valores tradicionais. Por “tradicionais” entende-se principalmente cristãos e (extremamente) conservadores.
Ideologicamente o Globalismo estaria associado ao “marxismo cultural”. Isto parece implicar que os canais políticos, de propaganda e de ação da esquerda não estariam mais ligados à luta de classes, mas agora à luta cultural. Daí o fato de o grande inimigo ideológico ser a escola de Frankfurt. Esse grupo de estudiosos é menos positivista e determinista que os marxistas tradicionais e se dedicou, entre outros temas, a estudos da cultura e de sua ligação a temas econômicos e sociais. E por isso a oposição bastante forte dos anti-globalistas às pautas identitárias, assim como à chamada ideologia de gênero, que seriam alguns dos canais de ação política e de tentativa de dominação dos marxistas culturais.
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O toque final desta teoria da conspiração é a crença em que todas as instituições multilaterais mais importantes, como a ONU, FMI, OMC e a União Europeia, estariam mancomunadas com importantes agentes do globalismo, como George Soros e Barak Obama – considerado um comunista radical – e outros marxistas-culturais, em um projeto de subversão dos valores tradicionais das sociedades ocidentais.
O grande herói dos anti-globalistas é Donald Trump, visto como “o salvador da civilização ocidental” por um importante membro do governo Bolsonaro. A política comercial de Trump, de enfrentamento aberto com a China, por exemplo, tem o apoio entusiasmado dos conservadores tupiniquins. Ocorre que essa política, até agora, só prejudicou os Estados Unidos. Diante da retaliação chinesa, reduziu-se um importante mercado para produtos dos EUA, e encareceu-se a produção doméstica, já que os insumos importados da China ficaram significativamente mais caros. O efeito final provável será a diminuição, e não o aumento, do emprego industrial nos EUA, em contraste com o que promete Trump. Os fatos, entretanto, são irrelevantes para uma ideologia que desconsidera os dados. O importante parece ser o enfrentamento da China, do globalismo e dos valores nocivos que corromperiam a sociedade.
Para os anti-globalistas o comércio não seria uma simples troca benéfica para ambas as partes, mas um mecanismo de dominação internacional. Daí a hostilidade à China. Setores do governo Bolsonaro e círculos em seu entorno andaram ensaiando atos de hostilidade ao país asiático, um caso clássico de um “rato que ruge”, dada a desproporção entre a força dos dois países na arena global. Ademais, como o Brasil vende à China – nosso principal parceiro comercial, não custa lembrar – commodities cujos preços são determinados no mercado internacional, não está claro como esse enfrentamento pode nos beneficiar. O ganho provável é zero, mas o prejuízo plausível é a China comprar esses produtos alhures, ficando o Brasil a ver navios vazios. A hostilidade do grupo aos fatos se estende, aparentemente, ao cálculo econômico.
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A aliança dentro do governo Bolsonaro entre populistas de direita e liberais pode ser mais frágil que aparenta. O DNA do presidente não está na escola de Chicago e seu círculo íntimo está coalhado de anti-globalistas. O presidente, por exemplo, sempre se opôs à reforma da previdência. Somente mudou de opinião ao perceber que não conseguiria governar se não implantasse uma reforma fiscal radical. Privatização sempre foi um tema malvisto em seu grupo. O recuo na extinção da EBC e da EPL – a empresa do trem-bala -, duas promessas de campanha, mostra que o cálculo político de curto prazo e a falta de convicção em muitas instâncias poderá dominar a racionalidade econômica e de gestão.
Essa contradição ficou bastante clara em recente medida de proteção à produção leiteira doméstica. Desde de 2001 a importação de leite em pó estava sujeita a uma tarifa adicional anti-dumping. Esta – como era prática comum nos governos anteriores – vinha sendo renovada automaticamente, sem qualquer estudo ou evidência de que as supostas práticas de dumpings persistiram (ou existiram…). Portanto, fazia todo o sentido que fosse eliminada e assim foi feito. Bastou, entretanto, o lobby dos produtores de leite se organizar, e a ministra da agricultura solicitar, que o presidente aumentou a tarifa de importação do leite. Em suas próprias palavras, isso restabeleceria a competitividade da produção local. Obviamente, em Chicago ou em qualquer escola de Economia, o canal para a maior competitividade é o aumento da produtividade e não o da proteção, que tende a eternizar a baixa eficiência.
Esses são pequenos sinais do que pode vir à frente. Em anos recentes, o país sofreu muito com o populismo de esquerda. A irracionalidade de agora vem do populismo de direita. Além do potencial de causar sérios problemas em nossas relações exteriores e em outras áreas chaves, como educação e cultura, a tendência pode levar a impasses na economia, dificultando a aprovação das reformas de que tanto o país precisa.
Fonte: “Valor Econômico”, 21/02/2019