Casa sem goteira é casa sem alma, dizia um velho amigo de meus avós. A goteira é um ponto de fuga, um vazamento, uma revelação. Como as meias furadas e os atos falhos e o sujo dos lençóis. Um dia, você é pego pela mãe da moça em pleno beijo na boca, mas tem goteiras maiores…
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O nosso sistema político tem muitas goteiras. Você poderia falar em esgoto – uma goteira ao inverso. No meu caso, quando penso em “política”, penso logo naquilo que dá ao esgoto a sua permanente e humilde função, mas vou elaborar em respeito ao leitor. Se é preciso recuperar o Zé Dirceu, é preciso também liquidar a dupla personalidade do Parlamento, curando-o de sua constitutiva e patológica dubiedade.
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Existem universais, embora tudo só possa ser visto na sua concretude, ou em particularidades. De longe tudo é belo e, de perto, nada – exceto entre outras coisas, as rosas e as bolas de gude – é perfeito ou normal. O ditador do Egito confessou-se cansado do cargo e largou-o depois da pressão de uma multidão enfurecida e de desagravos da Europa e dos Estados Unidos. Todos os ditadores e candidatos ao papel de mandão se dizem cansados, sacrificados e agora, como faz prova o merecidamente nosso José Sarney, transparentes no poder. O velho tédio cantado por Cole Porter ataca não apenas compositores dados a casuais (on of those things…) dissipações boêmias, mas atinge igualmente cleptocratas e velhos parlamentares com a transparência de rinocerontes. Incrível essa melancolia produzida pelo poder que, acima de qualquer outra coisa, torna um sujeito inimputável e acima das leis, dando-lhe o direito (e eu diria mesmo, o dever!, de não cumpri-las) justo porque está acima de todas as normas; ou seja – dos limites e do bom senso.
Revolta o estômago ver um José Genoino cujo refrão no poder era: “O PT não rouba e não deixa roubar!” entrar num carro oficial nas comemorações do aniversário do partido. O partido que prometia diferenciar-se pela lisura com a coisa pública e honrar as normas republicanas! Uma outra coisinha: adoram pintar o cabelo e muitos usam base.
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Vou ao enterro de uma pessoa amada e respeitada num lindo domingo de sol. Não digo o nome porque não sou invasor de intimidades. Falo apenas que foi a sogra de um amigo íntimo, o dr. Atam, um especialista em generalidades e palpites. Teve 12 filhos, perdeu um deles num terrível acidente na varanda de sua casa. Jamais reclamou ou se queixou da perda. Aceito-a, porque tudo cabia no seu nobre e grande coração. Foi uma grande amiga e, como genro, dela recebi – disse-me o amigo com a voz entrecortada pelo soluço – um formidável presente: minha esposa, a mãe dos meus filhos. Devo dizer ao leitor que o dr. Atam teve um longo e feliz matrimônio. Essa sogra sem língua de sogra, continuou, aceitou-me tal como sou: contraditório, nervoso, irritante, inseguro, cheio de opiniões. Enquanto muitos me viam assim, ela me olhava com os olhos benevolentes dos que acreditam em Deus e têm a serena paciência dos escolhidos. Quisera, falou o dr. Atam, prestar a ela uma homenagem justa e digna.
– Eu tomo a liberdade de escrever um pouco dessa conversa na minha próxima crônica, falei carregando na dose.
– Mas você não é pautado por algum editor?
– Não sou pautável nem por mim mesmo…
Em consonância com o sofrimento do mundo, com o mundo e pelo mundo; à nossa enorme indignação para com os cleptocratas que abundam na colorida paisagem da política nacional, recebemos também uma enorme capacidade de tolerar, justificar, legislar, afastar, abafar, compreender e esquecer, sobretudo esquecer…
Nossos corações são enormes, nossas almas, gigantescas. Nelas cabe tudo. Como não pensar nas perdas terríveis diante desta prova definitiva de que todos temos um fim? Como não voltar àquele caixão quando se segura na alça deste outro que também transporta um ente amado? Como não sentir o cheiro daquelas flores ao aspirar o melancólico perfume dessas rosas vermelhas amorosamente trazidas por minhas cunhadas?
Eis que dois velhos falavam do sentido do mundo num bar, bebericando e deixando suas almas saírem um pouco da segurança protetora dos seus corpos. Cada corpo aprisiona uma alma, louca para dele sair. Os santos e os poetas aprendem a soltá-las. São goteiras do espírito porque escapam dos limites do mero aqui e agora, desse presente poderoso, urgente e gozoso que nos aprisiona nas atenções do instante. A palavra é a chave da cadeia. É ela que força portões, cerra as grades e, abrindo as cabeças, solta as almas que sobem rapidamente para o ar puro e invisível que nos cerca.
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Romário fez seu primeiro discurso como deputado e de sua vida e se disse nervoso. Como eu sempre disse, o futebol é um grande professor de democracia liberal porque se baseia no desempenho (e não na cor da pele ou no nome de família ou no partido político), na obediência às regras, no respeito aos adversários e aos torcedores (que não podem deixar de gozar da liberdade de escolher). Ninguém pode se eleger goleiro ou atacante do Flamengo ou do Corinthians. Se pudesse, seria o fim do futebol. Tivesse o governo criado um Futebolbrás, e jamais seríamos campeões do mundo. O critério político substituiria o talento. Na política, entretanto, vale tudo. Ou será que um parlamentar não precisa ter um desempenho igual ou maior do que o de um jogador de futebol? A reunião dos dois numa só figura, como é o caso do Romário, permite a pergunta que não visa a ofender. Não seria por isso que os estádios estão cheios de cobranças e os parlamentos vazios, exceto de interesses inconfessáveis?
Fonte: O Estado de S. Paulo, 16/02/2011
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