Em nome da estabilidade do governo e da aprovação da reforma da Previdência, o presidente Jair Bolsonaro deve buscar o apoio de mais partidos, inclusive a partir de mudanças no comando de ministérios. Esta é a avaliação do cientista político Carlos Pereira, que considera “ingenuidade” acreditar que é possível governar no presidencialismo multipartidário sem contemplar os aliados.
O Globo – O governo tentou negociar com as frentes temáticas, mas desistiu e agora conversa com os líderes dos partidos. É o único modelo possível no trato com o Congresso?
Carlos Pereira – Para além da vontade do presidente de implementar uma nova política, existem instituições e regras do jogo. Se as instituições não mudaram, não vai ser fruto apenas da vontade do presidente. É um ajuste necessário diante de uma visão ingênua que o governo tinha de que seria possível governar no presidencialismo multipartidário sem coalizão. O governo fez um diagnóstico equivocado de associar coalizão e corrupção.
O Globo – A experiência recente mostra que houve episódios de corrupção que nasceram da troca de cargos por apoio…
Carlos Pereira – Governos de coalizão existem na grande maioria dos regimes políticos. É fundamental construí-las. O problema do governo é que ele demonizou as coalizões ao associá-las à corrupção, sem perceber que era possível gerenciar e fazê-las de forma diferenciada, definindo bem claramente quais eram os termos de troca e quais eram as políticas que estavam sendo negociadas. De uma forma transparente, para que a sociedade pudesse entender o que estava sendo trocado e por qual motivo.
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O Globo – O modelo de troca de cargos por apoio não ficou muito mal visto pelo eleitorado?
Carlos Pereira – Isso acontece em qualquer democracia. Na Alemanha é assim, Itália, Espanha… Nenhum partido vai apoiar um presidente apenas por causa dos seus olhos bonitos. Vai apoiar em cima de um compromisso de trocas institucionalizadas, de espaço no governo, de recursos que vão ser fundamentais para a sobrevivência desse partido na capacidade de implementar determinadas políticas. É fundamental que existam espaços de trocas do Executivo que possam ser partilhados com parceiros. Se não for assim, o jogo do presidencialismo se torna mais duro, mais caro e com a dificuldade de o presidente viabilizar sua agenda no Congresso.
O Globo – Em um mês de Congresso funcionando, a política tradicional já mostrou força?
Carlos Pereira – O problema fundamental é que o Bolsonaro tomou como rotina uma exceção. Tomou a exceção do governo petista corrupto como uma regra decorrente do presidencialismo de coalizão. Na realidade, o governo do PT se comportou de forma corrupta porque gerenciou mal. Fez coalizões muito grandes e heterogêneas, que eram distantes da mediana da preferência ideológica do Congresso. Essas decisões levaram o governo a necessitar de moedas de trocas não legais para continuar administrando. O presidente precisa montar uma coalizão relativamente pequena e ideologicamente homogênea. Se compartilhar poder e recursos de forma proporcional com cada partido e se essa aliança espelhar a preferência mediana do Congresso, necessariamente essa coalizão vai ser mais barata e virtuosa. Vai gerar mais sucesso para o presidente e se distanciar de experiências corruptas.
O Globo – O discurso do Bolsonaro na campanha era outro, e ele é muito forte nas redes sociais. Essa mudança não vai gerar frustração e reações?
Carlos Pereira – Ele vai ter que se comunicar com a sociedade e explicar. Chegar para os eleitores dele e dizer: ‘Olha, o mundo partidário não mudou, os incentivos são os mesmos. Preciso aprovar uma agenda importante para o Brasil e preciso de apoio do Legislativo. Sem o estabelecimento de rede de troca institucionalizadas, não vou conseguir. Agora, o que está sendo trocado é isso pra aprovar aquilo’. Ou seja, tem que explicar os termos da troca, para que a sociedade se convença da necessidade disso. Caso não explique, vai parecer uma traição. Se ele conseguir explicar, pode ser até que consiga o apoio da sociedade.
O Globo – O próprio PSL está envolvido em disputas internas. O governo não deveria arrumar a própria casa antes de expandir a aliança?
Carlos Pereira – Esses problemas de coordenação decorrem da ausência de um governo de coalizão majoritário. O presidente montou uma coalizão minoritária esperando que os legisladores fossem apoiar o governo em função de uma conexão direta que Bolsonaro tem com a sociedade, pressionando o Congresso. Só que o governo começou a perceber que o jogo é muito mais complicado. Então é fundamental ter uma coalizão, não só majoritária, mas estável, que perdure, porque essa aliança sinaliza para os seus membros uma repetição do jogo. Isso cria rotinas e liturgias, que geram compromisso, cooperação e consequentemente facilita a coordenação.
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O Globo – Alguns parlamentares já sugeriram reuniões semanais entre o presidente e os líderes. É só um simbolismo ou funciona na prática?
Carlos Pereira – Lógico que funciona, mas não é o determinante. Azeita, funciona diminuindo custos de coordenação, mas o fundamental é que líderes se sintam proporcionalmente recompensados. Um determinado líder disposto a apoiar governo e que tem 15% de força dentro do Congresso, tem que ser recompensado proporcionalmente a esses 15%. Se o governo conseguir fazer isso, as chances que o governo reverta essa sensação de imobilismo, de inércia e tenha mais capacidade de ação, aumenta.
O Globo – Bolsonaro está sabendo compartilhar o poder?
Carlos Pereira – Ele ainda não sinalizou aprendizado nisso. Existem várias ferramentas de troca num presidencialismo multipartidário. Uma delas são os ministérios. Os partidos aceitam participar quando tarefas são delegadas a eles, porque é sinal de compartilhamento de poder. Um critério fundamental para deixar um parceiro feliz, comprometido e coordenado pelo presidente é quando o parceiro percebe que está sendo recompensado proporcionalmente ao peso político. Se o partido tem 15% das cadeiras, mas é recompensado com 2% de espaço, vai se sentir desproporcionalmente recompensado. Se algum partido recebe muito mais do que tem de peso político, outros parceiros podem se sentir injustiçados. Mas o Bolsonaro não levou em consideração o peso político.
O Globo – O PSL tem o dobro de deputados do DEM e menos ministros…
Carlos Pereira – Existe um desbalanço entre peso político e recompensa. O governo não usou esta ferramenta como instrumento importante de coesão e disciplina. Preencheu muitos espaços com pessoas que não têm filiação partidária ou não representam fielmente determinado partido. Não soube ainda como gerenciar. É uma situação muito esdrúxula o PSL ter só um ministro (Turismo).
O Globo – Já é tempo de uma reforma ministerial?
Carlos Pereira – Acho que é um cenário necessário. Sem fazer uma recomposição levando em consideração o peso político dos parceiros, a chance de que seja bem sucedido na Previdência, por exemplo, diminui. É fundamental que o governo faça ajustes o mais cedo possível, porque quanto mais tarde os ajustes forem feitos, mais vulnerável o presidente vai estar. Os parceiros vão se posicionar de forma estratégica inflacionando o preço do apoio, e aí o governo pode se tornar refém.
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O Globo – O caso Queiroz e demissão do Bebianno não deixam governo em situação de desvantagem para negociar?
Carlos Pereira – Lógico. Os escândalos de corrupção são problemas de gerência da coalizão. A decisão do presidente de não ter coalizão estável e majoritária gerou vulnerabilidades. Agora, os novos acordos vão se dar em cima desse novo cenário.
O Globo – O sistema de coalizão é o único garantidor de estabilidade?
Carlos Pereira – Governos minoritários nunca acabam bem. Aconteceu no passado com Jânio Quadros, Collor… O início do governo Lula também foi conturbado, surgiu o mensalão. Não é recomendável o presidente governar sem esse escudo protetor, sem a base que consiga apaziguar os ânimos internos e gerar cooperação. É um risco.
O Globo – O Bolsonaro revogou o decreto que mudava a Lei de Acesso e já havia sido derrubado na Câmara. Já é um sinal da mudança de estratégia?
Carlos Pereira – A votação na Câmara foi uma clara sinalização do Legislativo de insatisfação. Bom que o governo aprendeu a lição e mudou a postura nesse caso. A nova elite que chega ao poder comete muitos erros, mas se o governo está apresentando capacidade de aprendizado, é muito positivo.
Fonte: “O Globo”