No dia 12 de março, a cidade de Recife, em Pernambuco, registrava os dois primeiros casos de covid-19. Era o início do surto em todo o Brasil e, além de estimativas assustadoras, nada na prática estava sendo feito em qualquer lugar do país. Passadas duas semanas dos primeiros registros, a prefeitura de Recife lançou a plataforma de telemedicina Atende em Casa, que faz a triagem de casos suspeitos em que o cidadão informa seus sintomas. Pacientes considerados moderados e graves são atendidos em uma teleconsulta com médicos e enfermeiros, que decidem se o doente fica em quarentena em casa ou é encaminhado a um hospital próximo. A própria plataforma agenda as consultas presenciais e avisa os cidadãos. “Há uma camada de análise e cruzamento de dados para prover ao gestor público informações que permitam a realocação de equipes de saúde, a abertura de novos leitos e o acompanhamento dos casos pelo aplicativo”, diz Hamilton Alves Pessoa, fundador da startup Fábrica de Negócios, uma das empresas envolvidas na criação do aplicativo encomendado pela prefeitura de Recife e pelo estado de Pernambuco. Até 17 de abril, mais de 8.000 pessoas haviam sido atendidas pela plataforma, e o estado registrava 2.000 infectados e 186 mortes.
Enquanto cerca de metade da população brasileira adota medidas de distanciamento social e boa parte das cidades tem restrições ao funcionamento do comércio, governos estaduais e municipais correm para digitalizar serviços públicos enquanto o país se protege da covid-19. No meio de uma pandemia, o avanço do (ou e-gov) é uma solução para muitos problemas. Primeiramente, evita que o cidadão vá aos órgãos públicos num momento em que os governos pedem que ele fique em casa. Ao automatizar o atendimento, eles também conseguem priorizar as demandas que precisam do serviço presencial entre as que podem ser resolvidas remotamente. E mais: permite uma melhor gestão do funcionalismo, tirando servidores de tarefas repetitivas e alocando-os em funções mais nobres na administração pública. “Com a emergência social provocada pelo coronavírus, parece que o Estado brasileiro descobriu que pode andar muito mais depressa do que imaginava na transformação digital”, diz Gustavo Maia, fundador da startup Colab, plataforma de zeladoria urbana adotada em mais de 100 cidades brasileiras.
A digitalização dos serviços públicos é uma tendência global. Países como Dinamarca, Reino Unido e Coreia do Sul criaram robustas estruturas de atendimento ao cidadão ancoradas em serviços digitais. No Brasil, desde 2016, um grupo de 200 técnicos da área de tecnologia hoje alocados na Secretaria de Governo Digital, do Ministério da Economia, está empenhado na digitalização dos serviços do governo federal. Dos 3.549 serviços prestados pela União, 55% já são online. Desde janeiro de 2019, 768 serviços foram automatizados. A transformação digital representa uma economia anual de 2,3 bilhões de reais aos cofres públicos — uma ótima notícia em tempos de déficit fiscal. Com a pandemia, novas ferramentas entraram no cardápio, como o aplicativo da Caixa Econômica Federal para liberar os 600 reais oferecidos como auxílio emergencial. “Sem dúvida, a pandemia foi um estímulo a mais para acelerarmos a implantação dos serviços digitais, que viraram uma questão emergencial”, diz Luis Felipe Salin Monteiro, secretário de governo digital.
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Mas tem sido nos estados e municípios que o avanço da covid-19 tem pressionado o uso de ferramentas online no serviço público, sobretudo na área de saúde. Assim como Recife, Teresina, no Piauí, também criou a jato um aplicativo de telemedicina. Cerca de 30 profissionais de saúde, todos afastados do trabalho presencial por terem mais de 60 anos, foram designados para atender os pacientes por videoconferência. O serviço foi lançado no dia 14 de abril e já registrava 280 pacientes por dia. A expectativa é que o número triplique nas próximas semanas. Teresina tem, por enquanto, menos de 50 casos confirmados, mas a prefeitura calcula que esse número aumentará exponencialmente em maio. “Tivemos de correr para providenciar atendimentos pela internet porque a população não deve sair de casa”, diz Firmino Filho (PSDB), prefeito de Teresina. Antes da pandemia, o uso de telemedicina no país era praticamente proibido pela legislação brasileira, permitido em algumas situações. Com a escalada dos casos no país, os governos locais não esperaram a mudança das regras para investir nessas plataformas. Apenas no dia 16 de abril o presidente Jair Bolsonaro sancionou o projeto de lei que libera o uso de telemedicina somente durante a pandemia. Ou seja, passada a crise sanitária, as consultas online voltarão a ser proibidas — jogando fora a experiência adquirida com telemedicina no surto de covid-19.
Também no Nordeste, a cidade de Caruaru, no interior de Pernambuco, está acelerando sua transformação digital com a crise. Com 362.000 habitantes, além de criar serviços online de zeladoria, como pedidos de poda de árvores e conserto de buracos na rua, a prefeitura passou a oferecer atendimento psicológico por videoconferência. “Muitas pessoas estavam com ansiedade e angústia devido à pandemia”, diz a prefeita Raquel Lyra (PSDB). Os pedidos de consulta são encaminhados por WhatsApp. Nos 11 primeiros dias de atendimento, mais de 700 pessoas haviam utilizado o serviço. “Foi uma iniciativa tomada para o período de coronavírus, mas podemos pensar em estendê-la por mais tempo”, diz Lyra.
Outra frente que tem caminhado rapidamente em meio à pandemia é a educação. Com as escolas fechadas, milhões de alunos em todo o Brasil estão em casa sem ter o que fazer — para desespero dos pais. No Rio de Janeiro, os alunos estão sem aula desde o dia 16 de março. A suspensão poderá continuar pelos próximos três meses, segundo a Secretaria de Educação do município do Rio de Janeiro. Para não atrapalhar o ano letivo, a prefeitura lançou um aplicativo com o conteúdo escolar. Os 510.000 estudantes da rede municipal têm acesso a aulas gravadas e lições de casa. O aplicativo já teve mais de 2,2 milhões de acessos. “Também estamos desenvolvendo conteúdos que deverão estar disponíveis na plataforma de aulas digitais da Microsoft Teams, com aulas ao vivo e interação com os professores”, diz Julio Urdagarian, presidente da Empresa Municipal de Informática do Rio de Janeiro. São Paulo também partiu para estratégia semelhante. O governo do estado criou um centro de mídia em que as aulas serão gravadas e também transmitidas ao vivo por meio de um aplicativo. Para que todos tenham acesso ao conteúdo, as operadoras de telefonia vão disponibilizar a conexão gratuita no aplicativo e depois o governo pagará o valor proporcional ao uso do app. “Nossa prioridade sempre será o professor na sala de aula, mas não podíamos deixar o aluno sem estudar até a pandemia passar”, diz Rossieli Soares, secretário de Educação do estado de São Paulo. O calendário de aulas deverá ser divulgado aos alunos até o dia 27 de abril.
É fato que muitos governos estão acelerando projetos de desburocratização que vinham sendo desenhados no Brasil pré-coronavírus. Depois de seis meses de desenvolvimento, o governo de Mato Grosso do Sul antecipou em cinco meses o lançamento de um aplicativo com 80 serviços públicos, entre eles a emissão de uma carteira do Sistema Único de Saúde. Para isso, a equipe envolvida saltou de 15 para 30 pessoas. A cidade de Santo André, na região metropolitana de São Paulo, começou o processo de digitalização de serviços públicos em 2018. Com a perspectiva de um longo período de quarentena, no final de março a prefeitura montou uma força-tarefa para digitalizar 2.500 formulários referentes a solicitações de empresas e cidadãos, como alvará de abertura de novos negócios. Para categorizar a pilha de papel e disponibilizá-la online, foram convocados 140 funcionários da prefeitura para trabalhar na tarefa. “Normalmente, esse processo levaria cerca de seis meses, não dez dias”, diz Pedro Seno, secretário de Planejamento de Santo André. Além disso, o município automatizou dez serviços. Não só o acesso ficou mais rápido como também as respostas da prefeitura aos cidadãos ganharam agilidade. Antes, solicitações como o alvará de uso de solo e outras licenças percorriam vários departamentos da prefeitura. Agora, os servidores de cada área chancelam o pedido online. “Hoje, as aprovações estão saindo em 15 dias. Antes, levavam de quatro a seis meses”, afirma Seno. Cerca de 1.450 pessoas já utilizaram esses serviços desde abril.
Adotar medidas rápidas, contudo, traz implicações. Um exemplo ocorreu com o lançamento do aplicativo da Caixa Econômica Federal para liberar os 600 reais oferecidos como auxílio emergencial. Parte dos atendidos pertencia à massa de 45 milhões de desbancarizados do país. Além disso, muitos não sabiam como usar o serviço online e foram até as agências, gerando aglomerações — o que se pretendia evitar com a ferramenta. “O risco é tornar digital a burocracia analógica do serviço público”, diz Letícia Piccolotto, fundadora do BrazilLab, programa de aceleração que conecta startups com o poder público.
Quando o assunto é governo digital, muitos olham para a experiência da Estônia, ex-república soviética que reconquistou a independência em 1991 e tornou-se um país moderno, em grande parte pelo avanço da tecnologia no setor público. Lá, praticamente todos os serviços do governo são digitais, exceto casamento, divórcio e compra de um imóvel. E mais: 99% das transações bancárias são feitas pela internet e 98% dos negócios são abertos online em questão de minutos. A digitalização extrema representa uma economia anual estimada em 2% do PIB do país de 1,3 milhão de habitantes e equivale a ter poupado mais de 844 anos de trabalho de cidadãos, empresas e servidores. Todo o conhecimento em transformação digital não impediu que o coronavírus, obviamente, chegasse ao país. Em 20 de abril, havia 1.535 contaminados na Estônia e 40 mortes registradas. Uma quarentena foi adotada no começo de março, mas o combate à covid-19 veio também pela via que os estonianos dominam bem: a tecnologia. No dia 20 de março, o governo acionou o ecossistema de startups para que fosse lançado um hackathon mirando o combate à doença. Esse tipo de competição costuma reunir times que, num prazo curtíssimo, desenvolvem uma solução para um problema específico. No evento da Estônia, batizado de Hack the Crisis, equipes online criaram em dois dias plataformas como a que avalia o risco de infecção de um cidadão e outra que conecta voluntários da área médica a quem precisa de ajuda.
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O movimento que era local se tornou global. Na nova disputa, que já envolveu 40 países, uma startup criada no Brasil e hoje com sede em Talim, capital da Estônia, ficou entre as dez primeiras colocadas. A OriginalMy, que desenvolve soluções de certificação digital com tecnologia blockchain, criou um software de prescrições médicas digitais, com validação da identidade do médico e assinatura digital. “Cerca de 3 bilhões de pessoas no mundo estão em isolamento social, porém mais da metade não tem acesso a um sistema eletrônico de receitas”, diz Edilson Osório Júnior, fundador da empresa. A ideia já passou por testes em hospitais privados no Brasil e com profissionais do programa Farmácia Popular. Como a ferramenta é gratuita, pode ser adotada por qualquer governo. Por isso, Júnior tem apresentado remotamente a plataforma que desenvolveu para técnicos de redes estaduais de saúde no Brasil.
Os países que têm sido bem-sucedidos nas estratégias de e-gov adotaram nos estágios iniciais a identificação digital. A partir dela, é possível acoplar todos os serviços que o Estado provê ao cidadão ao longo da vida: da vaga na escola na infância à aposentadoria na velhice. Foi assim na Estônia, no Reino Unido e na Dinamarca. No Brasil, há anos se arrasta um projeto de identidade única, que reuniria num mesmo documento dados como CPF, RG e título de eleitor. Pode parecer complexo para um país com as dimensões do Brasil, mas a Índia criou um sistema de identificação de sua população de 1,3 bilhão de pessoas. Todas elas têm as impressões digitais, a íris e o rosto escaneados no sistema, junto com informações como nome, data de nascimento, dados bancários e número do telefone celular. A iniciativa, que ganhou força em 2014, quando Narendra Modi assumiu a posição de primeiro-ministro do país, permitiu que 9,4 bilhões de dólares fossem economizados no governo ao eliminar beneficiários fantasmas. Na pandemia da covid-19, o sistema da Índia tem permitido monitorar se infectados estão cumprindo a quarentena e identificar quais regiões são mais afetadas pelo vírus — ainda que apenas 55% da população esteja conectada à internet. “O momento atual pode fazer com que mais pessoas passem a acessar os serviços online e entender como eles funcionam”, diz Narayanan Ramaswamy, líder de educação e desenvolvimento da KPMG Índia.
É fato que o engajamento digital do cidadão é proporcional à dependência da população em relação ao Estado. Outro fator para o avançar é que o poder público tem de garantir que os dados das pessoas em seu poder não caiam nas mãos de criminosos. Nos Estados Unidos, no dia 16 de março, houve uma tentativa de acessar os computadores do Departamento Nacional de Saúde, que reúne dados de hospitais e clínicas. O governo americano percebeu a tempo e impediu o ataque cibernético, mas o alarme soou na Casa Branca e em outros países em relação à necessidade de mais barreiras contra invasões nos sistemas. No dia 27 de março, a Europol, agência europeia que coordena a perseguição ao crime organizado, fez um apelo para que os países europeus invistam mais na unificação da digitalização do trabalho da polícia para que a missão de coibir crimes cibernéticos seja facilitada.
A digitalização na marra por causa da pandemia pode trazer benefícios no longo prazo às economias, pois será difícil convencer os cidadãos a abrir mão de facilidades recém-conquistadas. “O desafio será analisar o que funcionou mesmo em um cenário adverso e aprender com a crise”, diz Arnauld Bertrand, líder global de governos da consultoria EY. Ainda não é possível dizer, porém, quais desses serviços são temporários ou permanentes. No estado de São Paulo, o secretário de Educação estima que as aulas online se tornem complementares ao estudo presencial, mas não há expectativa de quando isso poderá ocorrer. Em Teresina há a previsão de que a telemedicina continuará após a pandemia. “Ao redor do mundo está sendo criado um legado tecnológico que não terá fim nem pausa”, diz David Eaves, professor de políticas públicas na Universidade Harvard. Como muitos aspectos da vida estão sendo transformados pelo coronavírus, a esperança é que os governos saiam melhores e mais eficientes desta crise também.
Fonte: “EXAME”