Escuta da polícia não tem autonomia para atropelar a Constituição – artigo 5.º, inciso XIV
Há dois dias o Poder Judiciário mandou divulgar uma conversa telefônica de natureza privada entre o jornalista Reinaldo Azevedo e Andrea Neves, irmã de Aécio Neves. Foi uma violência inaceitável. Compreender essa violência – e repudiá-la – é imperioso, se é que queremos preservar a democracia.
Andrea Neves fez sua carreira em sintonia com a carreira do irmão, de quem é considerada o “braço direito”. Agora está presa em função das delações da JBS (Aécio só não foi para trás das grades porque tem foro privilegiado; seu encarceramento depende de autorização do Supremo Tribunal Federal). O diálogo entre ela e o jornalista foi capturado no bojo da investigação policial, em escutas telefônicas devidamente autorizadas pela Justiça. Primeiro ponto crítico: a investigada era Andrea Neves, não Reinaldo Azevedo.
Depois de feitas as transcrições, o conteúdo do grampo foi divulgado pelas autoridades judiciais, como tem sido hábito no curso da Lava Jato. Eram cerca de 2.800 conversas interceptadas e entre elas lá estava a troca de palavras entre Andrea Neves e o jornalista.
Segundo ponto crítico: o que os dois falam entre si não tem nada que ver com o objeto do inquérito e, sendo assim, não deveria ter sido entregue ao consumo das plateias. A lei que regula a interceptação telefônica para fins de investigação impõe que as gravações e transcrições figurem “em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal”, e manda preservar “o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas”. Em caso de divulgação, que pode ser autorizada pelo Judiciário, a intimidade das pessoas gravadas nunca deveria ser exposta – a não ser em eventuais trechos excepcionais que elucidem a prática do delito investigado. O respeito aos direitos da personalidade deveria ser a conduta óbvia: a intimidade e a privacidade são protegidas pela Constituição e uma escuta da polícia não tem autonomia para atropelar a Constituição.
Lamentavelmente, não é a primeira vez que somos surpreendidos por um abuso desse tipo. No ano passado, conversas telefônicas íntimas entre dona Marisa Letícia e um de seus filhos, sem nenhum vínculo com os crimes investigados, foram divulgadas e exploradas com escárnio em meios de comunicação. Agora, porém, há um aspecto que torna ainda mais grave a exposição irregular da privacidade.
Chegamos, aqui, ao terceiro ponto crítico. A interlocução de Reinaldo Azevedo e Andrea Neves configura com absoluta nitidez uma conversa entre um jornalista, no exercício de sua atividade profissional, e uma fonte, da qual ele espera obter informações exclusivas. Ao dar publicidade a isso, as autoridades violaram outra garantia constitucional: o sigilo da fonte, que é assegurado pelo artigo 5.º, inciso XIV, ao profissional de imprensa.
Quer dizer, o descuido ou a maldade que motivaram a decisão judicial de invadir a privacidade alheia agrediu a instituição da imprensa e, por desdobramento, o direito à informação, do qual todo cidadão é titular. Essa violência vem ferir todos nós que, bem ou mal, tentamos praticar jornalismo no Brasil. Todos somos as vítimas em geral desse abuso em particular. Para dizer a mesma coisa com mais precisão: nós somos, por assim dizer, a “vítima-meio”, quer dizer, somos a vítima por meio da qual se perpetra um mal maior, que é intimidar os praticantes do jornalismo crítico e privar o público da prática da investigação jornalística. A “vítima-fim” é o público.
O sigilo da fonte ocupa lugar de fundamento essencial para a imprensa livre. Como o senso comum não entende bem o que é isso, vale insistir um pouco na razão de ser desse fundamento. As investidas contra o sigilo da fonte são frequentes, não só no Brasil. Nos Estados Unidos, a segurança nacional tem sido um dos pretextos. Aqui e lá fora são muitos os que acreditam que quando está em jogo um bem supostamente maior, seja a proteção das fronteiras de um país ou o andamento célere de uma operação policial, o sigilo da fonte pode – e até deve – ser sacrificado. No Brasil, recentemente, o juiz Sergio Moro constrangeu o jornalista Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, a revelar uma fonte. Foi um dos capítulos tristes da Lava Jato. Moro cometeu um erro sério. Logo depois teve a humildade de voltar atrás. Falhou, mas não tardou a se corrigir.
Sem sigilo da fonte não há jornalismo. Se não pode conversar reservadamente com interlocutores que têm segredos para contar, segredos que são de interesse público, um jornalista não tem como cumprir o seu dever de fiscalizar o poder. E se não pode fiscalizar o poder, um jornalista é apenas imprestável: a sociedade não precisa dele. Os tipos humanos que contam segredos aos jornalistas são bons e são maus. Às vezes, são quase santos. Outras vezes, são escroques repulsivos. Todos sabem que estão cometendo inconfidências em algum nível. Se não puderem contar com a garantia, dada por aquele profissional, de que não serão expostas, eles ficarão mudos. O sigilo da fonte, portanto, é providencial para o jornalista, mas é também do interesse direto do cidadão.
Por tudo isso, a medida truculenta de quebra de sigilo ofende a instituição da imprensa, além de acarretar prejuízos pessoais a Reinaldo Azevedo. Manifesto aqui a minha solidariedade a ele. Não concordo com o que ele escreve, mas isso não importa. Eu também não concordo com boa parte do que escreve Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, mas me solidarizei com ele. É preciso estancar essa escalada anti-imprensa.
Balas perdidas disparadas pela polícia matam transeuntes inocentes no Rio de Janeiro. Agora estamos diante de uma tragédia parecida: o “grampo perdido”. Disparado contra suspeitos de corrupção, o “grampo perdido” destroça as garantias de um profissional da imprensa que não tem nada que ver com a investigação que estava em curso.
A quem isso beneficia?
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 25/05/2017
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