Às vezes o que se cala fala mais que a palavra dita. Enquanto a liderança do movimento grevista de policiais militares anunciava que nenhum companheiro sacaria a arma, um silêncio medonho propalava, sem alarde, que todos estavam armados. Por evidente, só decide não sacar quem porta uma arma.
Policiais e bombeiros militares fizeram surgir um novo tipo de movimento grevista no Brasil: a greve armada. Fazendo tábula rasa do Estado democrático de direito e da legalidade constitucional, os grevistas desafiam as autoridades constituídas e põem em risco, por sua ação ou omissão, a vida e a integridade física, moral e patrimonial dos cidadãos.
Ao que parece, o exemplo baiano foi seguido no Rio de Janeiro e ameaça se alastrar, caso não haja um posicionamento claro por parte das autoridades e da sociedade civil.
Do ponto de vista jurídico, a questão não chega a ser complexa: a Constituição proíbe, no seu art. 142, §3, IV, a sindicalização e a greve de militares. Bombeiros e policiais militares são também servidores públicos militares, não apenas pelo nome, mas porque organizados com base nos princípios de hierarquia e disciplina, tal qual as Forças Armadas.
Ademais, as polícias militares e corpos de bombeiros são forças auxiliares e reserva do Exército, como proclama o art. 144, §6, da Lei Maior. Por fim, o art. 42, §1 da mesma Constituição da República declara textualmente que as disposições do art. 142, §2 e §3, entre as quais a proibição da greve, aplicam-se aos militares dos Estados e do Distrito Federal.
Portanto, justa ou injusta, pacífica ou violenta, a greve de servidores militares será sempre antijurídica e configurará conduta passível de punição administrativa. Penso, no entanto, que duas observações adicionais se fazem necessárias.
A primeira refere-se a certa visão populista de obviar o cumprimento das normas do estado de direito, como se fossem meras formalidades.
É preciso ser sensível ao problema remuneratório e abrir canais legítimos de negociação entre servidores e autoridades. Mas isso não autoriza posturas lenientes, que acabem por incentivar a cultura da ilegalidade como forma de atuação política.
A desobediência civil é medida extrema, admissível apenas em regimes de exceção e casos de insuportável injustiça. Ainda assim, convém lembrar que mesmo em tais situações a desobediência é civil, e não militar.
A segunda observação diz respeito ao mérito do problema. O constituinte foi sábio ao vedar a greve de militares. Não há similitude entre a greve realizada por trabalhadores da iniciativa privada — e mesmo por servidores públicos civis — e a situação peculiar dos militares.
Naqueles casos, a paralisação é reconhecida como único instrumento apto a superar a posição de inferioridade e subordinação dos trabalhadores e estimular maior flexibilidade e compreensão por parte dos empregadores. Já no caso dos militares, a vulnerabilidade é da sociedade civil, que se torna refém de corporações armadas e remuneradas pelos próprios contribuintes para protegê-los.
É preciso encontrar novos meios, civilizados e criativos, de mediação e negociação para endereçar as justas demandas dos nossos servidores militares. Essa não é uma causa corporativa, mas que interessa a todos os cidadãos.
Fonte: O Globo, 13/02/2012
Caro Professor Gustavo Binenbojm,
A interpretação que o senhor faz a respeito da Constituição é, como já seria de se esperar, correta. Tenho certeza de que se o eminente Ministro Gilmar Mendes analisasse a questão, ele diria que se trata de uma inconstitucionalidade aritmética.
No entanto, também é possível se sustentar outra interpretação, menos conservadora, que conduz à constitucionalidade do movimento grevista. Não vou entrar em detalhes aqui, até porque não tenho procuração para defender os bombeiros e policiais militares, nem estou ganhando um centavo para isso.
Em linhas gerais, esta outra interpretação que vislumbro diria assim: a norma constitucional proibitiva da greve dos militares não incidiria nesta determinada situação de fato porque a remuneração que eles vêm recebendo ofende a dignidade da pessoa humana, pois é quase impossível sustentar uma família nos dias atuais com um soldo de certa de 900 reais por mês. (continua…)
Aí, alguém poderá dizer: e quanto à lei do salário mínimo, que determina um valor bem abaixo de 900 reais? Também seria inconstitucional, mas, como o nosso próprio mestre Luís Roberto Barroso já afirmou, a declaração de inconstitucionalidade da norma que corrige o valor do salário mínimo traria consequências ainda piores, ou seja, a repristinação da norma anterior que institui um valor mais baixo, o que não seria nem justo, nem razoável se sustentar. Aliás, é próprio Barroso que sustenta que “tudo o que é justo, deve encontrar um caminho no direito”.
Para reforçar o pedido de não incidência da norma constitucional a esta situação de fato, poder-se-ia indagar a respeito da mutação pela qual o conceito de interesse público vem passando nos últimos anos por conta do movimento revisionista, que conta, inclusive com uma belíssima tese de sua autoria no livro: UMA TEORIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO.
(continua…)
Por último, é de bom alvitre asseverar que esta concepção de que os militares não podem fazer greve, já está um tanto anacrônica, pois é fruto de uma visão esquerdista de que os militares, ou, como gostam de dize, os milicos, eram e continuam sendo vistos com muita desconfiança pelos remanescentes do socialismo brasileiro. Como se vê, a constituição embasa mais de um ponto de vista, de modo que tudo acaba se resumindo, nos final das contas, numa questão de escolha.
Saudações!
Vital Mendonça, em 19/03/2012.