Nossa Constituição foi preparada para atender à tendência parlamentarista de seus autores. Mas na última hora, por obra e graça de um espírito pelintra baixado do Planalto na gestão Sarney, tornou-se presidencialista a muque, instituindo um sistema de governo de coalizão que atormenta os chefes do Poder Executivo e trai a vontade do cidadão.
Eleito duas vezes seguidas logo no primeiro turno, montado no alazão do Plano Real, que promoveu a maior revolução social da História do Brasil, o tucano Fernando Henrique Cardoso – é verdade – compôs um complicado bloco de apoio que não sabotou em nenhum instante sua autoridade de chefe de governo. Mas também é fato que, ao longo de seu segundo mandato, o desgaste a que foi submetido o tornou alvo favorito dos adversários oposicionistas e companhia incômoda dos aliados. Malandro, manhoso e esperto, o petista Luiz Inácio Lula da Silva entrou para a galeria dos grandes conciliadores de nossa História rompendo com a intransigência de origem de seus partidários para acolher à sombra do poder a rafameia da politicalha nacional, que tanto execrava antes. Tudo em nome da governabilidade.
Até hoje não parecem suficientemente claras as intenções do ex-presidente ao indicar Dilma Rousseff para o posto-chave da chefia da Casa Civil e, em seguida, fazê-la sucessora. Sejam quais tenham sido, é certo que não foi pelas semelhanças entre seus estilos. Lula, negociador habilidoso, treinado na luta sindical, e Dilma, ex-guerrilheira e burocrata com fama de “gerentona” implacável, têm abordagens opostas em relação aos políticos. O ex sempre proclamou seu desapreço, beirando a náusea, por ademanes e maracutaias (o termo é de sua preferência) da política clássica, com suas chalaças, negaças e traições, mas praticou-os como poucos o fizeram “antes na História deste país”. A atual atribuiu-se, além do estilo “faz sem falar” que adotou desde a candidatura, interesse pela articulação política, mas a prática tem revelado os limites de suas habilidades para essa arte, que exige de quem a pratica estômago de avestruz e paciência de monge. Sem vocação para irmã Dulce, ela atravessou o primeiro semestre de sua gestão entre tapas dirigidos a aliados recalcitrantes e beijos destinados a antigos desafetos de sua grei e demônios de suas crenças.
O primeiro exemplo de seu esforço para assoprar foi a carta elogiosa ao ex-presidente Fernando Henrique por ocasião de seu 80.º aniversário, espécie de senha para os salamaleques subsequentes de correligionários, como o presidente da Câmara, Marcos Maia, e subordinados, como o ministro da Defesa, Nelson Jobim. O empenho de morder revelou-se em permanentes crises com a base aliada do governo no Congresso, que desaguaram na aprovação de um Código Florestal infiel aos cânones oficiais, e no boxe sem luvas da ocupação dos cargos na máquina pública pelos aliados, que desperta os apetites mais vorazes e vulgares destes. O presidencialismo de ocasião e coalizão propicia a prática da fritura depois do banho-maria, que faria o florentino Maquiavel corar.
Nunca Lula apunhalou sem antes anestesiar a vítima com muita saliva. Dilma revela preferência pelo tranco como método de persuasão. Por isso alguns analistas interpretaram a citação da metamorfose dos idiotas apud Nelson Rodrigues, no discurso do xará Jobim do “anjo pornográfico” no primeiro escalão, como uma diatribe dirigida a colegas de Esplanada, com direito a queixa sibilina ao estilo de terraplenagem imposto à relação com subordinados pela chefe, insinuada nos elogios à delicadeza do ex-chefe.
Não parecia ainda ter sido absorvida a cusparada do ministro da Defesa quando nova crise surgiu com notícias de reclamações intramuros de Dilma contra seu ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, presidente nacional do PR, um partidinho aliado. O mal-estar foi revelado pela Veja que circula esta semana, dando conta da insatisfação de Dilma com a maneira heterodoxa como o subordinado disporia de verbas orçamentárias destinadas à maior parcela de obras incluídas no Programa de Aceleração de Crescimento (PAC). Segundo a revista, haveria na pasta um esquema de cobrança de propinas de 4% de empreiteiras e de 5% de empresas de consultoria relacionadas com obras em rodovias e ferrovias. Chegou a ser anunciado que os quatro principais burocratas envolvidos no escândalo tinham sido demitidos, mas isso não foi confirmado: um tirou férias e de outro não se sabe bem. Um vexame!
Vexame maior foi que a cabeça do presidente da sigla aliada foi mantida sobre o pescoço, com o bônus do apoio público da própria Dilma, que se limitou a determinar que Alfredo Nascimento apure as denúncias com rigor, seguindo a praxe lulista de dar ao réu poderes de juiz sobre si mesmo. Se fosse técnico de futebol, poder-se-ia dizer que ele foi “prestigiado”, mesmo após ter seu time levado quatro gols no jogo. O episódio demonstra claramente as limitações da chefia do governo no regime de coalizão vigente no Brasil. Se Lula lambia o local da ferida antes de apunhalar, Dilma grita, mas nem sempre demite. Ou seja, a dependência dos votos das bancadas situacionistas nos embates do Congresso mantém a presidente refém dos interesses subalternos dos aliados.
Isso é trágico para o Estado Democrático de Direito, pois Dilma foi eleita pela maioria do eleitorado para exercer plenamente o Poder Executivo e isso não ocorre pelas dificuldades da chamada governabilidade. Pode-se argumentar que, tendo herdado essa situação de dois governantes habilidosos, sem contar com idêntica prática em manhas e mumunhas, o máximo que ela pode fazer é tentar forçar um pedido de demissão pela técnica mal-educada da humilhação testemunhada. Se a prática prospera, o espírito republicano tenderá a definhar até morrer, se é que ainda não morreu. Ou Dilma reage e resolve, ou poderá naufragar e levar junto a estabilidade.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 06/07/2011
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