Cortar despesas é o ponto central do programa de Paulo Guedes, economista que auxilia Jair Bolsonaro (PSL) na disputa pela Presidência. “Meu diagnóstico é o seguinte: gasto público, gasto público, gasto público; reforma fiscal, reforma fiscal, reforma fiscal.”
Sua defesa do teto constitucional de gastos estabelecido no governo Temer é radical. “Gosto e tem que aprofundar”, afirma. Ele demonstra incômodo também com o gasto com juros. ” Eu estou botando teto em todas as minhas despesas. Financeiro também. Não quero gastar mais que R$ 300 bilhões”, afirma.
Na Previdência, defende um modelo de capitalização, que conviveria com o da repartição, já ajustado por regras de aposentadoria mais duras. Não detalha como financiaria a transição de sistema. Diz apenas que o segurado com menos de 20 anos poderia optar entre os dois modelos.
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Apresentado em eventos partidários como ministro da Fazenda de Bolsonaro, Guedes reconhece que tem divergências com o chefe. Eles discordam sobre o alcance das privatizações, a imposição de restrições a investimentos estrangeiros, sobretudo da China e sobre a pactuação de alianças com o chamado “Centro” depois da eleição.
A seguir, os principais trechos da entrevista de duas horas e meia ao “Valor”:
Valor: Há rumores de ruídos entre o senhor e Bolsonaro.
Paulo Guedes: Eu diria que a característica da nossa conversa é a franqueza absoluta. Ele é uma pessoa muito franca. Eu também. Então em vários momentos ele vira e fala: “Paulo, pode ser até que isso aí seja importante, mas tem de ver se o Congresso aprova”. É interessante, porque vocês podem ter a leitura construtiva ou a ruim. A construtiva é: estão com medo de um democrata? O sujeito diz: “Será que o Congresso aprova?”. Ou a negativa, que diz: “Ei, vocês estão se desentendendo”. Eu, economista, tenho um diagnóstico. Acho que as reformas têm que vir. Ele está cada vez mais se informando da urgência dessa agenda. Previdência, tributária, reforma fiscal. E tem, realmente, considerações de parte a parte. “Olha, não é do jeito que economista imagina, mundo ideal de fazer tudo; tem o Congresso.” Eu falo: “Claro, claro. Mas também não é do jeito que o político imagina, que vai continuar postergando ajustes inadiáveis”. Não houve mal estar. Há franqueza.
Valor: Qual é seu envolvimento?
Guedes: Ele sabe o seguinte: quanto mais próximo estiver do programa liberal-democrata de verdade, mais provável é o meu envolvimento total. Quanto mais longe estiver, menos provável.
Valor: Qual é a proximidade?
Guedes: Eu, sinceramente, não sei. Temos uma conversa franca.
Valor: O senhor tem dito a ele que a prioridade do país deveria ser qual na área econômica?
Guedes: As medidas têm de refletir um diagnóstico. Eu vi o Brasil estagnar, degenerar em termos de corromper um regime democrático. Então, meu diagnóstico é o seguinte: gasto público, gasto público, gasto público; reforma fiscal, reforma fiscal, reforma fiscal.
Valor: Esse diagnóstico, de que a solução passa por um ajuste rigoroso, pressupõe embate com as corporações. Como isso se coaduna com as corporações que apoiam Bolsonaro? Polícias? Militares?
Guedes: Excelente questão. Foi isso que afetou o ajuste do Temer. Um ajuste que iria ser de R$ 800 bilhões, depois do filtro caiu para R$ 400 bilhões. Mas nem os R$ 400 bilhões aprovaram.
Valor: O senhor me desculpe, mas a pergunta foi sobre Bolsonaro.
Guedes: É evidente que ele, como deputado, num país saqueado, ele achava que o mandato dele era proteger quem deu os votos para ele. É na-tu-ral. Eu não digo que é certo. É compreensível. Como é compreensível que o Fernando Henrique tenha dado prioridade à sua reeleição, não à reforma da Previdência. Como é compreensível que o Temer tenha dado prioridade à blindagem, e não à Previdência. Agora, na hora que receber o mandato presidencial, tem que mudar. Aí você fala: “Como é que vai ser feito isso?”
Valor: Como? A questão da Previdência, por exemplo?
Guedes: Eu estou estudando Previdência com dois sistemas. Um é esse que está aí, o de repartição. Quem já está nesse avião segue a vida. Eu não quero adiar o combate frontal ao principal problema, que é o descontrole dos gastos públicos. O Tancredo [Neves], quando entrou, falou assim: “É proibido gastar”. Houve redemocratização e essa foi a primeira orientação do presidente. Por quê? Porque o Tancredo viveu o caos inflacionário, viveu desestabilização política.
Valor: Mas o senhor estava falando da Previdência…
Guedes: Isso. Em vez de enfrentar os gastos públicos lá atrás e fazer um combate à inflação curto, intenso, mesmo que houvesse algum custo, fizemos o programa de estabilização mais longo da história. E fomos achando tudo na base da tentativa e erro. Levamos oito anos para descobrir a força da política monetária, do Cruzado ao Real. Aí levamos 12 anos para descobrir que câmbio era ferramenta importante. Aí você chega assim: “E na Previdência?”. Você não pode condenar gerações futuras a entrar no mesmo avião, que está com problemas e que está descendo.
Valor: E quem está no avião?
Guedes: Segue no avião.
Valor: Mas se é repartição, esse passageiro depende de quem entra [no sistema]. Como fazer?
Guedes: Quer dizer que você é a favor que seu filho entre num avião que vai cair? Para você pular de paraquedas? Quem diz que é inexequível fazer a transição para capitalização está defendendo o seguinte: seu filho deve entrar no mesmo avião que você está para que você possa pular de paraquedas; se seu filho entra, você ganha a sua aposentadoria, mesmo que você o condene à queda.
Valor: Qual é a sua proposta de transição para um novo sistema?
Guedes: Gente, pelo amor de Deus… Volte para [a discussão] gasto público. Previdência é uma dimensão das três que a gente tem de atacar frontalmente. Eu quero dar a visão maior. Você só chega na Previdência se você pensar no gasto. Você tem de começar pelo teto. Desculpe. Começar pelo teto.
Valor: A questão da Previdência é simples: Existe ou não uma proposta e que proposta é essa?
Guedes: Existe uma proposta. A Previdência vai ter um novo regime trabalhista e previdenciário e o antigo regime. Um liberal democrata tem o direito de dizer: “Escolha”. Opcional.
Valor: Como é que se banca esse custo de transição?
Guedes: Primeiro eu queria que, moralmente, você me respondesse: Você é a favor de botar seus filhos num regime que existe para nós? Ou você acha que nós devemos assumir essa responsabilidade sobre o que fizemos? O sistema já quebrou. Vamos para a nova Previdência. Choque de emprego, porque não vai ter encargo trabalhista. Serão 2, 3, 4 milhões de
Valor: O que o senhor fará com o trabalhador do setor público ou privado que tiver 30 anos de contribuição e 50 anos de idade?
Guedes: Reparametrização. O que está sendo estudado aí? Tem alguém dizendo algo diferente?
Valor: O senhor já falou em usar privatizações para constituir um fundo para bancar uma transição.
Guedes: É um caminho possível. Está sendo estudado. O importante é que estamos de olho em bombas do sistema atual. Tem de ser reparametrizado. A primeira é a da idade. Alguém discorda? Aí tem uma segunda bomba: essa já explodiu, condenou 50 milhões à informalidade. São os encargos altíssimos. Se o candidato para quem eu estou fazendo o programa não fosse nesse direção, perguntaria eu para vocês: Estaria eu lá? Bolsonaro é um cara inteligente.
Valor: Ele sempre foi um deputado federal que nadou contra a corrente. O senhor acha que ele terá capacidade de agregar apoios?
Guedes: A resposta dele é a seguinte: “Eu poderia ter a governabilidade que o Temer tem, que essa turma tem; estaria hoje na cadeia. Quer assim ou quer um modelo diferente de governabilidade?”. Para mim tem outra configuração. Sabe o que é, gente? É o seguinte: esse cara vai ganhar a eleição. Ele está vindo aí. Eu estou contra essa interpretação simplista, carbonária e sectária que é o seguinte: “O Brasil vai explodir se um tucano não ganhar”, “Ou Alckmin ganha ou será o caos”, “Ciro e o Bolsonaro são o caos”. Acho isso um desserviço.
Valor: Vamos discutir programa.
Guedes: Certo, certo. Por que o Brasil se perdeu? Por que a social democracia, que fez coisas bonitas, como incluir os pobres, redemocratizar o país, por que se perdeu? Resposta: Descontrole dos gastos públicos. Então como vai ser o programa? Tem de aprofundar, você não pode ceder nenhum território conquistado. Oito anos entre o Cruzado e o Real para descobrir a política monetária; 12 anos para descobrir a importância do câmbio flutuante; 14 anos até a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ou seja: um troço que deveria ter sido feito de uma vez só levou 14 anos. E vocês querem que em seis meses o Bolsonaro vire um economista?
Valor: Ele pode não ter virado um economista, mas político o senhor já virou.
Guedes: Você perguntou se tem proposta da Previdência, eu disse que tem. Um regime novo, trabalhista e previdenciário, onde não tem encargo trabalhista, e choque de empregabilidade.
Valor: O senhor gosta do teto?
Guedes: O Ciro [Gomes] disse que não gosta do teto. O [Eduardo] Giannetti e o André Lara [assessores de Marina Silva] disseram que não gostam. Eu gosto. E acho que tem de aprofundar. É mais sério do que isso. Quando você bota teto e não ataca as despesas, o teto cai.
Valor: O país tem 90% das despesas, hoje, que são rígidas.
Guedes: Não são 90%. Serão 98% em 2022. É menos de 90% hoje, uns 80%. São bastante altas.
Valor: O gasto discricionário, que pode cortar, é pequeno. Como faz?
Guedes: Tem R$ 300 bilhões de discricionários. São R$ 35 bilhões de isenções fiscais, mais R$ 20 bilhões de não sei do quê… Olhei o seguinte: você tem de gerar 2,5% no primeiro ano, mais 2,5% no segundo ano. Sai do déficit e depois gera um pequeno superávit. Para poder pelo menos tentar pagar as despesas financeiras. É difícil? É. Mas é evidente que há espaço.
Valor: O senhor está falando do primário ou do operacional?
Guedes: Do primário. Você tem de abrir espaço no primário. Aí você fala: “Não tem como, porque tem isso, aquilo”. Isso quer dizer que você está chegando nos [gastos] obrigatórios. Não é isso? Quero falar das três maiores despesas. A maior de todas: juros…
Valor: Aí é despesa financeira.
Guedes: Vou acelerar as privatizações. Por isso que eu falei nessa primeira. Só porque é a maior. Aí todo mundo diz: “Pô, o cara quer privatizar aceleradamente, quer vender os talheres”. Quando a Petrobras vende um ativo para reduzir dívida, todo mundo aplaude. É claro que considero um crime esse negócio de política monetária superapertada, fiscal frouxo e gerar esse negócio de R$ 4 trilhões de dívida. Por isso que atirei primeiro nas privatizações aceleradas. Não é porque eu quero mexer no operacional, no primário. Você não falou de teto? Eu estou botando teto em todas as minhas despesas. Financeiro também. Não quero gastar mais que R$ 300 bilhões. Acho uma indecência gastar mais do que R$ 300 bilhões com juros. Então é o seguinte: vou privatizar para mudar a estrutura de passivo.
Valor: Você chegou a falar em R$ 700 bilhões [de recursos a serem arrecadados com privatizações]. Depois falou em R$ 500 bilhões.
Guedes: Eu pedi a dois grupos diferentes para estudar. Um falou algo entre R$ 600 bilhões e R$ 800 bilhões, valor médio de R$ 700 bilhões; e o outro me falou entre R$ 700 bilhões e R$ 900 bilhões. Foram dois trabalhos diferentes.
Valor: E a despesa com pessoal?
Guedes: Você vai ter de chegar lá. Tem coisas que são óbvias para mim, e que são delicadas politicamente. Quando um governo assume, ele tem dois discursos, né? Um discurso possível é: “Está tudo bem, tudo beleza, vamos em frente”. O outro é entrar em um território complexo. O outro é o seguinte: “Senhores, por que duplas indexações?”. Tem gente indexada em salário, salário indexado em inflação, depois aposentadoria indexada em salário mínimo. Por que isso? Tem que completar a transição. Abrimos o sistema político, mas não fizemos a descentralização dos recursos. Trabalhamos contra a orientação dos constituintes.
Valor: Então vem aí uma revisão geral da Constituição?
Guedes: Não. Não. É um programa de uma aliança de centro-direita liberal democrática. Tivemos 30 anos de social democracia. FHC criou impostos não compartilhados. Nós vamos descentralizar.
Valor: Já há um déficit público enorme com o recurso centralizado. Descentralizando, como é que fica?
Guedes: Então fique no erro. Mantenha tudo centralizado porque o déficit é grande. Mantenha a previdência antiga. Fique com a democracia corrompida, a economia estagnada. Entendeu?
Valor: O que eu quero entender é qual a sua proposta para descentralizar e dar conta do déficit.
Guedes: Começou a entender o porquê de uma privatização acelerada? Na hora que faço isso, começo a reduzir a despesa de juros, começo a entender porque é que tem que ter o controle de teto de gasto. Estou conversando com o Mansueto [Almeida, secretário do Tesouro], com todo mundo. Olha aqui [tira um papel do bolso]: “Questões prementes para o primeiro ano do governo. Reforma da Previdência. Privatização da Eletrobras. Fim do abono salarial. Cessão onerosa. Regra para conter a expansão do Benefício de Prestação Continuada. Toda a agenda micro que está andando na Câmara”. Nós não vamos jogar nada disso fora.
Valor: Aí o seu candidato diz assim: “Tem país que está comprando terras no Brasil. Não podemos entregar nossas riquezas minerais, nossas terras, nossas linhas de transmissão, nossas hidrelétricas…”
Guedes: Perfeitamente. Está ótimo. O que quer dizer isso? Tem um sujeito falando, com essa opinião, e tem um cara que está fazendo o programa econômico, que não pensa isso aí.
Valor: Mas o sujeito é o Bolsonaro, o seu candidato a presidente.
Guedes: O que você quer que eu faça a respeito? Desculpe. Se ele andar 30% na direção daqui, vamos conversando, vamos andando.
Valor: Com essa divergência, acha que Bolsonaro é o mais preparado para aplicar este programa?
Guedes: Acho o seguinte: ele está bem à frente desses todos. É bem mais decidido. Ele não veste jaqueta, tira jaqueta. É difícil convencê-lo. Mas convenceu, está dentro.
Valor: O investidor chinês que quer empreender em linha de transmissão não pode ficar em dúvida?
Guedes: A dúvida é natural. Relaxa e pensa: E se eu falar para ele [Bolsonaro] que do jeito que está vai ter apagão? Ele vai escolher.
Valor: Como ele vai governar?
Guedes: Ele já tem 87 congressistas. Tem mais apoio individual do que qualquer força.
Valor: O senhor tem o mapa??
Guedes: Não, porque não me meto em política. Mas o deputado Onyx Lorenzoni [DEM-RS, coordenador informal de Bolsonaro] tem. Até o fim de julho terá 120 nomes. Não estou falando ainda do acordo de centro-direita em torno de um programa liberal. Não sou aventureiro. Esqueçam este negócio de golpe. Ele será um presidente que se propõe a cortar poderes. Quem vai dar governabilidade é o prefeito que vai receber o dinheiro que é do seu município, sem precisar se corromper.
Valor: Como o senhor conheceu o Bolsonaro? Quem apresentou?
Guedes: Eu havia escrito um artigo em que dizia que o centro não tinha como se consolidar. Aí recebi três ou quatro convites para falar com ele. Não era ele indo atrás de mim, eram pessoas. Um deles era um empresário que morava lá fora. A família dele vai votar no Bolsonaro. Eu falei que não ia marcar quatro reuniões. Desmarca três, marca uma, a que tiver menos intermediários. Era a do cara que mora lá fora. Escolhi a mais simples. Eu fui lá, estava ele [Bolsonaro], os filhos e dois ou três da equipe dele. E a conversa foi direta. Nós temos tido duas reuniões por mês. Em seis meses, foram 12 reuniões.
Valor: Bolsonaro comprou a ideia da privatização?
Guedes: Eletrobras ainda não. Mas ele já falou: “Fecha um terço das estatais. As que foram criadas pelo PT, fecha logo, tudo aparelhado. Outro terço pode privatizar. E o outro terço eu quero pensar”. Se o terço dele for as grandes, não adianta, porque quero reduzir dívida. Preciso das grandes.
Valor: Qual era a visão que o senhor tinha do Bolsonaro antes?
Guedes: Eu não tinha uma visão prévia, como não tenho de 80% dos congressistas brasileiros..
Valor: Se o senhor sentir que Bolsonaro tem proposta que não represente compromisso com a democracia, o senhor se afasta?
Guedes: Seguramente. Não acredito que ele seja capaz de dar passo nessa direção. Posso estar errado.
Valor: E a ideia é manter a carga tributária ou reduzir?
Guedes: Reduzir, reduzir.
Valor: Há espaço fiscal?
Guedes: Não agora. Mas tem que ir para 20% [do PIB], no máximo. A carga tributária foi de 20% para 38%, 36%. O ideal é, em quatro a cinco governos, voltar para 20%. Você consegue recuar em 2%, 2,5% [do PIB] em um governo.
Valor: Qual seria a reforma política de um governo Bolsonaro?
Guedes: Não acho que a política corroeu a democracia. O modelo econômico é que destroçou tudo. Só precisa de uma ou duas cláusulas. Primeiro, a de desempenho. Não pode ter 35, 40 partidos. A segunda cláusula é a de votação em bloco. Vamos trocar a votação mercenária, compra de voto no varejo, por uma sustentação orgânica.
Valor: Mas já tem isso. É o fechamento de questão.
Guedes: Mas tem que usar. Situação que bota em risco as finanças do país? Votação em bloco com fidelidade partidária. Alguém aperta algum botão, pode ser o presidente do Congresso ou o da República, e diz: “Olha, tô mandando uma matéria super importante”. Aí aperta o botão e, plim, é cláusula de fidelidade programática. Aí você não precisa comprar ninguém. É libertação da classe política.
Fonte: “Valor Econômico”