O assunto é perturbador. A indignação é incontornável. Os sintomas são ubíquos. A cultura do privilégio, o nepotismo, o desvio de recursos públicos, o tráfico de influência, o coronelismo anacrônico. Os eleitores assistem atordoados à infindável sucessão de escândalos políticos.
Não são apenas denúncias fabricadas por disputas partidárias. Não é uma simples luta pelo poder no Senado. Nem se trata de uma campanha midiática dos caçadores de cabeça contra Sarney por seu apoio ao governo Lula. A crise é sistêmica e não será aplacada por rituais de sacrifícios com um pescoço a mais ou a menos. Por falar nas guilhotinas, há mais de dois séculos suas lâminas abateram uma nobreza sem funções e responsabilidades, de um lado, e cheia de privilégios, de outro — uma aristocracia esvaziada que se convertera em uma casta inútil.
A centralização administrativa promovida pela monarquia absolutista dos reis da França esvaziara o poder da aristocracia feudal. E as irrefreáveis tendências dos ideais democráticos tornaram inaceitáveis os privilégios de uma nobreza que perdia legitimidade conforme se esvaziavam suas funções. À medida que subiam os impostos no Antigo Regime, os privilégios dessa casta se tornavam mais ofensivos à população. Para Tocqueville, o Antigo Regime e a Revolução de 1789 eram indissociáveis, uma continuidade histórica mais do que uma inexplicável ruptura.
Nossos escândalos políticos refletem também uma transição inacabada do Antigo Regime para a Grande Sociedade Aberta. As crises sucessivas e a desmoralização da classe política têm sólidos fundamentos na hipertrofia do Estado, na excessiva centralização administrativa, nas deficientes estruturas partidárias e na inadequada legislação eleitoral. Os “Anões do Orçamento”, os precatórios, a Jorgina do INSS, o Lalau do TRT, a Sudam, o “propinoduto” de Marcos Valério, o “Mensalão”, os “Sanguessugas” e agora o “Senadão” são os sintomas de um fenômeno mais profundo.
A exibição na mídia dessa sucessão de escândalos e seus protagonistas tornou-se o equivalente moderno, em uma democracia representativa, dos espetáculos de decapitação em praça pública na versão radical da “democracia” jacobina. Para escapar da guilhotina midiática, o Congresso precisa recuperar suas funções e responsabilidades, abrindo mão simultaneamente de seus privilégios. A reforma administrativa no Senado é apenas uma obrigação imediata, pois o que realmente interessa para a reconstrução de sua credibilidade é uma reforma política.
É inaceitável que a única forma de conduzir as atividades políticas, desde o financiamento de campanhas até a obtenção de maiorias parlamentares, seja uma prática sistemática de escândalos a céu aberto. Os senhores senadores da República nos devem a iniciativa de uma proposta de reforma para o exercício adequado de suas atividades que os tornem novamente.
(O Globo, 06/07/09)
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