Era previsível. Começou a grita contra a reforma da Previdência. O argumento é o mesmo de sempre. Corporações afetadas pela perda de privilégios – sobretudo no Legislativo, Judiciário e Ministério Público – afirmam que as mudanças propostas pelo governo atingem preferencialmente os mais pobres.
É um argumento errado. É verdade que, para reduzir o déficit previdenciário e arcar com o envelhecimento populacional, será necessário o sacrifício da sociedade brasileira. Mas qualquer análise honesta da reforma demonstra que as perdas se concentram sobre aqueles que detêm mais privilégios: a parcela do funcionalismo público mais bem-remunerada, que ganha mais de R$ 30 mil e pertence ao 1% mais rico da sociedade brasileira.
A proposta apresentada pelo governo é complexa, repleta de detalhes técnicos e cria um sem-número de situações distintas. Não está isenta de falhas a aperfeiçoar ou buracos a preencher. A linha de argumentação daqueles que a criticam, ao contrário, costuma ser simples e enganosa.
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Economistas sérios, dedicados ao tema, têm publicado incessantemente fatos demonstrando como a reforma proposta é, na verdade, um mecanismo que redistribui a renda dos mais ricos para os mais pobres. Os principais motivos são resumidos pelo economista Carlos Góes:
1- O estabelecimento de uma idade mínima de aposentadoria afeta sobretudo aqueles que se aposentam hoje por tempo de contribuição. Apenas um quinto dessas aposentadorias correspondem ao patamar de um salário mínimo, segundo análise do Instituto Mercado Popular. No meio rural, menos de 0,5%. Quase 90% das aposentadorias por idade equivalem ao mínimo. O pobre já se aposenta na idade mínima – e isso não mudará.
2- O desconto mensal aplicado sobre quem recebe salário mínimo cairá de 8% para 7,5% (de R$ 80 para R$ 75). A alíquota efetiva sobre as menores faixas salariais, até o teto de contribuição previdenciária, também será reduzida. Perto de quem ganha o teto de R$ 5,8 mil, o desconto será reajustado de 11% para 11,7%. Os funcionários públicos que recebem mais de R$ 10 mil, esses sim, sofrerão desconto superior a 19% sobre a parcela que exceder esse valor, indo a até 22%. Quem ganha R$ 30 mil, e paga hoje R$ 3.500 à Previdência, pagará R$ 4,8 mil. O pobre ganha um pouco, o rico perde muito.
3- As restrições ao acúmulo de benefícios para quem ganha pensão e aposentadoria atingem sobretudo quem ganha mais. Quem recebe até um salário mínimo terá um maior percentual de acúmulo permitido. Quem ganha mais não poderá acumular a pensão do cônjuge morto com a aposentadoria. Ninguém poderá acumular mais de dois salários mínimos de benefício adicional, medida que não atinge os mais pobres.
4- Quem recebe mais que um salário mínimo precisará trabalhar mais tempo se quiser manter o mesmo salário de contribuição ao se aposentar. Os mais pobres não. Como a média das contribuições deles costuma ficar abaixo do mínimo, a aposentadoria é reajustada para cima, pois não pode ser inferior a esse patamar.
5- Os setores mais bem remunerados do país, incluindo parlamentares, funcionalismo municipal e estadual (para os quais mudanças são sempre mais difíceis) também estarão sujeitos a todas as regras que atingem os ricos do funcionalismo.
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Alguns pontos da reforma ainda precisam ser aperfeiçoados para reforçar o caráter redistributivo. No campo assistencial, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado a miseráveis ou a deficientes, passará a ser pago a partir dos 60 anos, não mais a partir dos 65, no valor de R$ 400.
Embora só vá atingir um salário mínimo aos 70 (em linha com a prática internacional), isso equivale na prática a uma redução de 5% na remuneração total paga pelo governo nesse período. De acordo com o cálculo de Góes, para que ficasse igual, o BPC deveria ser de R$ 421.
Não seria difícil estabelecer um critério de evolução ao longo desse período, para que haja até ganho. Pelas contas do governo, as mudanças assistenciais correspondem a 15% das economias totais com a reforma.
Outro ponto que terá impacto sobre os pobres (e na certa será debatido) é o aumento no tempo de contribuição exigido para aposentadorias rurais, de 15 para 20 anos comprovados. E também o tempo mínimo de 20 anos para mulheres, sujeitas a maior informalidade e a afastamento do mercado por causa da maternidade. Noutros países, é aplicado um desconto sobre o tempo exigido, de acordo com o número de filhos.
Transformar, contudo, tais problemas pontuais em ataque aos princípios da reforma não passa de oportunismo. Do funcionalismo rico e dos políticos que, até hoje incapazes de encarar o problema da Previdência com seriedade, só contribuíram para enfiar o Brasil no buraco.
Fonte: “G1”, 22/02/2019