É difícil ser otimista em meio à maior crise econômica da história brasileira, enquanto a televisão exibe cenas pornográficas de capitalismo de compadrio – empresários que corrompem deputados, senadores e até juízes. Se você anda deprimido, desanimado, e pensa em se juntar aos amigos que emigraram para Portugal e postam fotos de bacalhau com vinho nas redes sociais, uma recomendação (só vale se você lê em inglês). Entre no site da livraria virtual mais próxima e encomende, ou baixe, “Brazil in transition”, ou “Brasil em transição”. Seus autores, os cientistas políticos Carlos Pereira e Marcus Melo e os economistas Bernardo Mueller e Lee Alston, acham que o Brasil está diante de uma oportunidade única de entrar para o clube das nações mais desenvolvidas do mundo. Segundo a tese que eles defendem, o que leva um país ao crescimento sustentável não é apenas a riqueza monetária ou natural (capital físico) ou a educação de seus cidadãos (capital humano), mas sim as crenças, que estão na base das instituições. De acordo com os autores do livro, o Brasil desenvolveu – ao longo dos primeiros 32 anos de um período democrático que esperamos ser longo – as crenças certas. Queremos, em primeiro lugar, democracia. Em segundo, incluir socialmente os cidadãos de um dos países mais desiguais do planeta. E, por último, fazer isso sem quebrar o Estado.
Na entrevista que se segue, Melo e Pereira expõem seu otimismo com nosso ciclo de “inclusão sustentável”. Advogado do diabo, o economista Samuel Pessoa alerta sobre a complexidade de voltar a crescer, ainda que com as crenças certas. Ainda mais num momento em que, ao que parece, fraquejamos em uma delas – estamos em crise econômica como consequência de um período de imperdoável irresponsabilidade com as contas públicas. Pessoa adverte que estamos diante de uma escolha. Ser uma Argentina, em que governos populistas se sustentam graças a ciclos de commodities, alternando períodos de gastos exorbitantes com quebras dolorosas. Ou um Chile, que fortalece suas instituições a partir de consensos básicos propiciados pela democracia. Como na novela clássica “Cândido”, pessimismo e otimismo não são apenas questão de humor. O livro de Voltaire sugere que não basta filosofar – “É preciso cultivar nosso jardim”. No caso brasileiro, isso significa exorcizar o populismo – e recuperar as crenças que já abraçamos.
Época – Como o Brasil passou a acreditar em democracia, inclusão social e responsabilidade fiscal?
Marcus Melo – As instituições que refletem essas novas crenças foram forjadas no final da década de 1980, a partir da resistência contra o regime militar. As ideias de democracia surgiram dentro desse contexto. As ideias de inclusão também. A responsabilidade fiscal se forja na década de 1990, a partir da experiência inflacionária. Vale para o Brasil como valeu para a Alemanha, dentro da República de Weimar. Isso culmina com a Lei de Responsabilidade Fiscal em 2000.
Época – A responsabilidade fiscal é mesmo um valor no Brasil? A gente acabou de ter um surto inflacionário, mas mesmo assim existe muita gente no país defendendo que o governo deve gastar mais para que o crescimento volte.
Samuel Pessoa – Eu gosto muito do livro de Marcus Melo e Carlos Pereira. Eles tiveram uma coragem absurda de publicar essa obra otimista na maior perda de PIB per capita da nossa história. O argumento geral deles, no entanto, pode sofrer tropeços. Um tropeço é o próprio tamanho do desafio fiscal. A gente já caminhou, se conseguirmos aprovar a reforma da Previdência será um grande passo, mas não está claro se conseguiremos dar esse passo. Também não está claro em que medida essa crença é tão consolidada assim. A gente vê aqueles 30% que apoiam o ex-presidente Lula e seu projeto político. Se lermos os textos que são veiculados no site do PT, e o texto do economista Luiz Carlos Bresser-Pereira [Manifesto do Projeto de Brasil Nação, publicado em abril], que vários intelectuais assinaram, há lá medidas econômicas doidas, que levam a gente para a Venezuela.
Carlos Pereira – Nós argumentamos que existem crenças na rede dominante – pessoas que têm a capacidade de influir no processo decisório – que podem nos levar ao desenvolvimento. E identificamos que essa rede dominante está muito comprometida com a responsabilidade fiscal. O próprio governo Dilma, quando se reelegeu em 2014, deu uma grande guinada ao nomear um ministro que pensava diferente dela, e ao mesmo tempo totalmente consistente com essa crença dominante. O Joaquim Levy tentou fazer um ajuste fiscal no segundo mandato do governo Dilma, e só não conseguiu porque o governo estava muito desgastado, até pela crise política que veio da mentira que foi criada. Vendeu-se um país nas eleições e se encontrou outro país após as eleições – uma espécie de estelionato eleitoral. Outro exemplo. Talvez não tenha sido por acaso que a ex-presidente Dilma tenha sofrido um processo de impeachment não por corrupção, mas por crimes fiscais. Isso é extremamente sintomático, e mostra que a rede dominante estava vendo esse pilar da responsabilidade fiscal sendo negligenciado de forma consistente pelo governo Dilma.
Época – O próprio Partido dos Trabalhadores, quando chegou ao poder, em 2003, mudou suas crenças econômicas.
Pessoa – Exatamente. O Partido dos Trabalhadores, no primeiro governo Lula, continuou com a agenda de reformas e aquele bom resultado foi aplicado na agenda social, de acordo exatamente com o modelo que está descrito no livro deles. Você tem de um lado responsabilidade fiscal e, por outro lado, equidade – um ataque ao nosso problema histórico da desigualdade. A coisa desandou no meu entender a partir de 2009, como resposta à crise, e a gente está tentando arrumar. Nessa arrumação me preocupa muito o posicionamento da esquerda brasileira, pois a esquerda foi para a extrema-esquerda. Com isso, a gente tem a centro-esquerda completamente vazia. O PSDB foi para a centro-direita – e acho que será muito difícil, com Alckmin ou Doria, fazer o movimento de volta para a centro-esquerda. E o Lula está disputando a extrema-esquerda com o Psol, pelo que eu leio do que ele fala. Assim, a centro-esquerda, que é a expressão política dessas duas crenças, está totalmente vazia.
Época – Uma crise como a que vivemos pode atrapalhar as crenças?
Melo – Eu acho que, ao contrário, ela vai reforçar. É superimportante vocês terem remetido a discussão para o primeiro governo Lula. Na imprensa internacional, ele passou a ser um bom exemplo de responsabilidade fiscal com inclusão, um país-modelo para o Banco Mundial. As capas da “Economist” são muito expressivas disso. O que nós argumentamos é que as crenças que foram forjadas na década de 1990 e início dos anos 2000 sofreram três choques exógenos. O primeiro é a alta das matérias-primas. O Brasil é um grande produtor de commodities, não só petróleo. Isso combinou com algo fundamental que foi a descoberta do pré-sal, que levou em 2010 a Petrobras a fazer a maior oferta de ações da história do capitalismo – foram quase US$ 80 bilhões. Esse choque é típico da situação que se chama de “maldição dos recursos”. As restrições fiscais foram abaladas por esse choque.
Época – Achávamos que estávamos ficando ricos?
Melo – Exatamente. O segundo choque exógeno é a crise internacional. Ela se abate com muita força nos Estados Unidos em 2008. Isso levou, no Brasil, a uma relegitimação de instrumentos de intervenção na economia, que não encontravam guarida no consenso anterior, sob o governo Palocci. Abalou também o equilíbrio interno entre setores dentro do PT, e dentro do governo.
Pereira – Com essa enxurrada de recursos, setores da economia, principalmente a indústria nacional, se sentiram atraídos por essa política de desenvolvimento liderada pelo Estado, com empréstimos subsidiados. Esse modelo que pensávamos sepultado pós-Plano Real ganhou nova vida.
Melo – Nós nomeamos esses setores no livro – construção, petróleo e gás – como setores contratistas. Eles passaram a ter um protagonismo na rede dominante – e tudo mudou. O BNDES, que já era o quarto maior banco de investimento do mundo, quadruplicou de tamanho. E a tudo isso se juntou algo que pode ser considerado um choque exógeno de menor magnitude, a coincidência de o Brasil sediar as Olimpíadas e a Copa do Mundo. Isso tudo levou a um boom de obras que fez com que o setor contratista se tornasse protagonista.
Pessoa – A Argentina está amarrada nesses ciclos de commodities, em interação com o ciclo da política local, desde os anos 1940. A dúvida que eu tenho é se a gente vai virar a Argentina. A gente melhora um pouquinho, vem um boom de commodities e um presidente populista, que destrói tudo, e nesse destruir tudo a gente vai ficando mais pobre, que é o que acontece com a Argentina há 70 anos. Eles tinham uma renda per capita que era o triplo da nossa, e hoje é só 40% maior. Podemos, em vez disso, adotar uma trajetória mais construtiva, que é a trajetória do Chile, que tem como elemento básico alguns acordos comuns, compartilhados por todos.
Época – Vai haver uma eleição em 2018. Vamos virar o Chile ou a Argentina?
Melo – Deixa só eu usar uma imagem aqui. A economia brasileira tem problemas estruturais sérios. A economia brasileira é um doente. O que explica o doente ter tomado um porre e ter ido para UTI são os três choques. Agora a gente entra na doença agravada por essa fase de UTI. Em nossa recuperação já existem algumas coisas sinalizando positivamente. Há um levantamento feito pelo FMI de regras fiscais mundo afora e o Brasil já é bem-visto pela severidade, graças ao teto de gastos.
Época – Estamos na UTI e nosso médico é o Michel Temer. O que vai acontecer?
Pereira – A gente falou que há dois pilares, que se imbricam, que se fundem, que se amalgamam, que são a inclusão social e a responsabilidade fiscal. Eu queria tocar no que o Pessoa falou sobre a esquerda brasileira, e como ela está se posicionando sobre esse debate, e porque está indo para a extrema-esquerda e perdendo de vista esse legado do Lula 1, de inclusão com responsabilidade. A esquerda acha que o governo Temer, o médico-chefe da UTI, traria riscos para o primeiro pilar, que é o da inclusão social. Existe um argumento muito forte da esquerda de que a reforma trabalhista ou a reforma da Previdência trariam riscos a direitos ou trariam riscos a todo esse pilar da inclusão. De certa forma essa é uma falácia. Não é crível para um governo frágil politicamente negligenciar esse primeiro pilar. Dou como exemplo o Bolsa Família, que já recebeu dois aumentos substanciais no governo Temer. O mesmo acho para a esquerda e a área fiscal. Ela não abraçaria a irresponsabilidade de braços bem abertos.
Melo – No livro, falamos muito da experiência traumática da hiperinflação. Estamos tendo uma experiência ainda mais traumática agora. O cataclismo dos últimos três anos, que vai durar ainda mais um pouco, tem representado e representará um aprendizado, nos dando um sentido de emergência em relação à centralidade das questões fiscais. Eu acho que essas experiências, mais que a inflação no passado, desautorizam de forma muito firme quaisquer aventuras fiscalmente irresponsáveis. É claro que haverá sempre 25% da população, um grupo de partidos de esquerda radicalizados, que terá uma narrativa contrária. Mas a maior parte da população já vê a importância da área fiscal. Por isso, acho que o paciente vai ficar doente crônico e sair da UTI. Se ele vai restaurar a saúde plena são outros quinhentos.
Época – Vamos então sair da UTI para a doença crônica – e isso é uma mensagem otimista.
Fonte: “Época”, 1º de junho de 2017.
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