“Vocês repararam que o PSDB perdeu a quinta eleição seguida e a mídia conservadora jamais lhe pediu autocrítica?”.
A indagação de Fernando Haddad, pelo Twitter, situa-se a meio caminho entre a alienação e a má-fé. A cobrança, que não se restringe à “mídia conservadora”, relaciona-se às sucessivas vitórias eleitorais do PT, não à derrota recente.
A tão necessária revisão teria que incidir sobre a política econômica que elegeu Dilma duas vezes, às custas da maior recessão da nossa história, e à corrupção sistemática, que financiou três triunfos eleitorais. Mas, para fazê-la, seria preciso uma régua política estranha ao lulismo.
Haddad parecia a muitos, inclusive a mim, um potencial deflagrador da “refundação” do PT. Engano. Sua entrevista à Folha (26/11) prova que o discurso esboçado no segundo turno era teatro eleitoral.
O candidato, que engoliu a narrativa do “golpe do impeachment” por exatas três semanas, retorna como sonâmbulo ao aposento de sempre, recoloca a máscara de Lula e se exibe como líder do PT de Gleisi, Lindbergh et caterva.
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Lula “teria ganhado a eleição”, afirma o profeta Haddad, desafiando as evidências disponíveis. A operação de transferência de votos lulistas foi um sucesso, como atestam os resultados do primeiro turno.
Todos os indícios sugerem que, no segundo, o “moderado” Haddad obteve até mesmo os sufrágios de incontáveis eleitores refratários a votar em Lula. A profecia haddadiana não é um exercício de análise contrafactual, mas um truque retórico para a reinstalação da narrativa sectária.
Na entrevista, quando acusa o Judiciário e o Ministério Público de operarem sob “viés antidemocrático”, Haddad retorna à lenda da conspiração universal contra o PT.
Nela, quando sugere que nossa democracia deu lugar a um “modelo híbrido”, Haddad curva-se ao dogma inventado no impeachment, descrevendo o triunfo de Bolsonaro como a conclusão de um “golpe das elites”. O disco de vinil riscado repete, aborrecidamente, seu verso mais tedioso.
Mano Brown compareceu ao comício de Haddad, na Lapa (RJ), para dizer que “o PT não está conseguindo falar a língua do povo”. Naquela hora, Haddad deu “toda razão” ao rapper, antigo “companheiro de viagem” do lulismo. Mas, diante da Folha, esqueceu o episódio, atribuindo o triunfo de Bolsonaro à “elite econômica” que “abriu mão do verniz”.
O círculo narrativo se fecha: a “elite”, de “viés antidemocrático”, impediu a vitória certa de Lula, concluindo o “golpe do impeachment” pela imposição de um “modelo híbrido”.
O PT, puro e galante, organizará uma frente de defesa dos direitos sociais (a “frente popular”, na linguagem emprestada do stalinismo) e uma frente de defesa dos direitos civis (a “frente democrática”, na mesma chave de linguagem). De Haddad, não sai nada.
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Recessão econômica? Corrupção nas estatais? Defesa do falido regime ditatorial venezuelano? O PT não tem nada a rever. “Depois de tudo que aconteceu, quase tivemos a quinta vitória consecutiva”, comemora Haddad.
“Fomos vítimas de uma campanha de terrorismo cultural”, explica o esboço de resolução da direção nacional do partido. Por isso, “a defesa do PT exigirá um trabalho profissional de reconstrução da imagem”. É coisa para as turmas do marketing, da cenografia e da maquiagem.
A mistura fina de triunfalismo e vitimismo tem utilidade: serve para lacrar a direção lulista numa redoma higienizada, salvando-a da crítica de suas próprias bases.
Também tem consequências. O PT que não admite se reformar condena a esquerda brasileira a viver num gueto político e social, agarrada às reminiscências do lulismo.
Pior: a eternização de uma narrativa desmoralizada agrega nutrientes à lagoa fétida da extrema direita bolsonarista. O governo eleito tem tudo para dar errado. Mas, ao menos, tem no PT de Haddad a oposição de esquerda dos seus sonhos.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 01/12/2018