O melhor pensador para entender a esquerda no Brasil não é Karl Marx, mas o italiano Antonio Gramsci. Enquanto Marx conclamava a revolução de operários e camponeses, Gramsci se preocupava com professores e intelectuais. Para o marxismo-leninismo, nenhum pensador jamais teria a experiência dos proletários. Gramsci acreditava ser possível aos oprimidos criar um pensamento próprio. Como? Nos partidos políticos. “Para alguns grupos sociais, o partido político nada mais é que o modo próprio de elaborar sua própria categoria de intelectuais orgânicos”, escreveu em seus Cadernos do cárcere. “Um intelectual que passa a fazer parte do partido político de um grupo social confunde-se com os intelectuais do próprio grupo.” Gramsci forneceu, na prática, um álibi que permitiu a gerações de acadêmicos e artistas misturar a atividade partidária à intelectual. Carimbou o passaporte daqueles que gostariam de falar em nome da classe operária, sem precisar pertencer a ela. Derivam de Gramsci as ideias que levaram ao “aggiornamento” dos comunistas europeus no pós-guerra — e que, no Brasil, originaram o PT.
Natural, portanto, que intelectuais petistas se dediquem a uma copiosa produção para preservar a narrativa redentora do “partido dos pobres”, mesmo diante das evidências de corrupção e da condução trágica da economia.
Leia mais de Helio Gurovitz:
O paradoxo eleitoral de 2018
Estamos a salvos da crise argentina?
É preciso abrir os arquivos militares
Em vez de cumprir o dever intelectual (necessário) de entender as condições políticas e econômicas que levaram o projeto petista ao naufrágio, preocupam-se, à moda dos “intelectuais orgânicos” de Gramsci, com o dever político: condenar a prisão de Lula e o impeachment de Dilma sob a pecha de “golpe”, para manter vivo o projeto de poder. A narrativa do “golpe de 2016” se espalha por cursos universitários, livros, documentários e artigos na imprensa. Exemplo típico é A radiografia do golpe, em que o sociólogo Jessé Souza, presidente do Ipea no governo Dilma, desenvolve fabulações em série: no lugar dos crimes fiscais, entram preconceitos raciais, interesses “mesquinhos” e a aliança entre elites, Judiciário e a “mídia” para espoliar o Estado. Ou então O processo, filme sobre o impeachment em que Maria Augusta Ramos, sob o manto da técnica documental, amplifica a defesa de Dilma enquanto desdenha a essência da acusação.
Nem toda a produção dos “intelectuais orgânicos” do PT deve ser desprezada. O melhor representante da maré talvez seja o recém-lançado O lulismo em crise, do cientista político André Singer. Que ninguém se engane: Singer tem todos os cacoetes e presta as devidas vênias aos cânones sagrados do petismo. É insistente na apologia do nacional-desenvolvimentismo que levou o Brasil à bancarrota e na repetição de falácias econômicas — como a noção primária (e errada) de que, necessariamente, juros altos só beneficiam os bancos e a austeridade fiscal prejudica os pobres. Suas contradições não são poucas. Admite que o impeachment se deu dentro dos limites da lei, embora insista no termo “golpe”. “Houve um golpe por dentro da Constituição”, escreve (seja lá o que isso signifique…). Reconhece o valor republicano da Operação Lava Jato, embora a considere “facciosa” ao atingir o PT. “Como chamar de antipetista uma operação que mandava plutocratas para o presídio?” Pois é… como?
+ de Gurovitz: Prepare-se para a baixaria
Mas Singer tem qualidades que distinguem sua obra do conteúdo panfletário. Seu texto é sereno e preciso nos fatos. É certeiro na leitura dos “erros em série” de Dilma no campo político. Atinge seu melhor momento ao abandonar a veia partidária para analisar os protestos de 2013 e as manifestações pelo impeachment. Descobre que o próprio PT criou os elementos de sua queda, ao estimular a noção da “nova classe média”, que ele prefere chamar de “nova classe trabalhadora”. “Em termos políticos, essa concepção empurrava a nova classe trabalhadora para os braços do adversário”, escreve. A expectativa frustrada de uma vida de “classe média” levou à revolta que derrubou Dilma e abriu espaço a outras narrativas, hoje mais atraentes ao eleitor que as fábulas dos intelectuais orgânicos do PT.
Fonte: “Época”, 20/05/2018