O sistema eleitoral brasileiro, com eleição em dois turnos, favoreceu até este ano o centro do espectro político. Para se eleger, sempre foi preciso se afastar de propostas extremistas e tentar conquistar os eleitores moderados, sem os quais não se soma mais da metade dos votos.
Foi o que Luiz Inácio Lula da Silva fez em 2002, com a célebre Carta aos Brasileiros. Foi o que Geraldo Alckmin tentou fazer sem sucesso em 2006, quando repudiou a privatização de estatais (na época, vista como anátema pelo eleitor). É o que tentarão, cada um a seu modo, fazer agora Jair Bolsonaro e Fernando Haddad.
Na entrevista que ambos deram ao Jornal Nacional anteontem, repudiaram a ideia de uma nova Constituição. Haddad trocou o figurino “Lula livre” por trajes mais sóbrios e deixará de visitar o ex-presidente na prisão. Bolsonaro faz acenos aos pobres e aos nordestinos.
Mesmo assim, o aguçamento da polarização nos últimos anos torna o embate diferente de todos os demais. Do lado de Haddad, a estratégia de oposição entre povo e elite, pobres e ricos, “nós contra eles”, adotada pelo PT para vencer os últimos quatro pleitos, esbarra em limites óbvios.
A Operação Lava Jato e o impeachment de Dilma Rousseff não destruíram o partido (Haddad, afinal, somou mais de 31 milhões de votos). Mas o levaram a afastar-se da realidade inédito, ao insistir em fábulas e histórias da carochinha na tentativa de explicar o inexplicável.
Leia mais de Helio Gurovitz:
O Congresso vira à direita
A arrancada de Bolsonaro
Por que o ódio toma conta da democracia
Haddad tem de convencer o eleitor de que não é apenas um fantoche de Lula, que quer tirá-lo da prisão para “transformar o Brasil numa Venezuela”. Mas não pode abandonar a mitologia petista, que vê no impeachment e na prisão de Lula uma conspiração de políticos, banqueiros, empresários, juízes, procuradores e a imprensa para tirar do poder o “governo popular”.
Como explicar o conteúdo da delação do ex-ministro Antônio Palocci, que deu novo frescor às denúncias de tramoias nas gestões petistas? Como não considerar também “popular” um movimento que arrebanhou mais de 49 milhões de votos?
O principal obstáculo ao PT foi justamente ter perdido o monopólio sobre o tal “povo”. Isso não aconteceu agora. Começou nos protestos de rua de junho de 2013, continuou nas manifestações pelo impeachment e culminou no fenômeno Bolsonaro. O sentimento que galvanizou todas essas mobilizações foi o antipetismo.
É inútil tentar apresentar Bolsonaro como um extremista de ideias autoritárias, que representa uma ameaça à democracia e aos direitos fundamentais. Inútil tentar reviver a frente democrática que combateu a ditadura, num momento em que o país se vê mesmerizado por alguém que mimetizou a ascensão do PT para criar um populismo tão poderoso e assustador quanto o criado por Lula.
Ao chegar ao poder, o PT se viu obrigado a abandonar suas convicções para governar. A forma como fez isso resultou nos maiores escândalos de corrupção da história brasileira e na prisão de seu maior líder. Como agirá Bolsonaro diante de um desafio semelhante?
Embora deva sua ascensão ao vácuo político aberto pela Lava Jato e ao antipetismo, o fenômeno Bolsonaro não se resume a isso. Em seu núcleo, há uma orientação ideológica tão nítida e organizada quanto havia no início do PT. Densa o bastante para transformar o PSL, ao longo dos anos, numa espécie de “PT da direita”.
Nesse ponto, contudo, Bolsonaro 2018 é diferente de Lula 2002. Quando eleito, Lula já dispunha de uma base partidária sólida. O PT já disputara e perdera três eleições presidenciais, governara estados e prefeituras. O PSL era, até o início do ano, uma legenda nanica à espera de quem pudesse pagar o melhor aluguel.
Pode-se argumentar que o movimento bolsonarista nas redes sociais supre a falta de organização partidária. Que a campanha de Bolsonaro já derrotou quem tinha mais dinheiro, alianças regionais e tempo de TV. Mas tal visão é um equívoco. Primeiro, porque Bolsonaro só conseguiu chegar a 49 milhões de votos depois de construir uma base extensa de alianças locais (como já escrevi).
Segundo, e mais importante, porque governar é diferente de vencer uma eleição. É preciso dispor de quadros e programas para todas as áreas da máquina pública, de projetos e coalizões na Câmara e no Senado, de ideias práticas que consigam ir além de slogans ideológicos para incendiar os fieis. Até agora, Bolsonaro não mostrou nada disso.
Mostrou apenas desprezo pela imprensa, pela academia e pelo conhecimento. Ressentimento com a diferença e tudo aquilo que não caiba na visão de mundo tosca que contamina os movimentos populistas mundo afora. Desconexão da realidade econômica e política dificílima que será obrigado a enfrentar se eleito – cenário desafiador até mesmo para o mais experiente dos políticos, que dizer de um parlamentar que deve seu sucesso a declarações e memes feitos sob medida para chocar.
A vitória provável de Bolsonaro no próximo dia 28 representará o fim do sistema político vigente desde a redemocratização, aquele que favoreceu o centro e a acomodação, em detrimento dos extremos. O país se vê agora polarizado entre duas propostas antagônicas, sob vários aspectos inconciliáveis. A vitória de um lado não aniquilará o outro.
Fonte: “G1”, 10/10/2018