A política no Brasil atingiu um grau de tensão inédito em nossa história recente. A campanha eleitoral tem ignorado o debate de ideias e propostas. Ninguém sabe direito o que os dois candidatos favoritos a chegar ao segundo turno — Jair Bolsonaro e Fernando Haddad — pensam fazer a respeito das reformas previdenciária ou tributária, como pretendem reequilibrar o Orçamento, negociar com o Congresso Nacional, resgatar os investimentos em infraestrutura, reduzir a criminalidade, combater a corrupção ou melhorar a qualidade da saúde e da educação públicas. Seus programas reúnem um amontoado de chavões genéricos, destinados a agradar às respectivas plateias, sem muita conexão com a realidade prática do governo. Cada declaração de um assessor detalhando alguma proposta controversa vem logo seguida de desmentidos. O importante não é a realidade dos problemas. É convencer o eleitor de que tal ou qual candidato traz a solução, a salvação contra o mal representado pelo adversário e o caminho rumo ao paraíso, ora pintado em tons de vermelho, ora de verde-oliva. Provável que, no segundo turno, o eleitor tenha mesmo é que fazer uma aposta no escuro. Como chegamos a tal ponto?
Inútil falar em crise institucional ou debater quem atirou a primeira pedra no clima de ódio recíproco que toma conta de nossa democracia.
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Basta lembrar o Reino Unido do Brexit, os Estados Unidos de Donald Trump e o avanço do populismo em países tão díspares quanto Hungria ou Filipinas, Turquia ou Venezuela. “Democracias estão sendo transformadas pelo poder do sentimento de formas que não podem ser ignoradas ou revertidas”, escreve o economista William Davies, da Universidade de Londres, no recém-lançado Nervous States (Estados nervosos). “Em vez de denegrir a influência dos sentimentos na sociedade, precisamos ouvi-los melhor e aprender com eles.”
Seu livro se distingue entre os vários que tentam compreender o novo populismo por não adotar uma postura defensiva. Ele dá um mergulho histórico e filosófico profundo — vai de Descartes a Hobbes, de Freud a Hayek, de Le Bon a Clausewitz — para produzir uma crítica certeira do sistema tradicional de conhecimento, com seus acadêmicos, jornalistas e “especialistas”. “Afirmativas objetivas sobre economia, sociedade, corpo humano e natureza não podem mais ser isoladas das emoções”, diz Davies. “Fatos produzidos por especialistas e tecnocratas simplesmente não capturam a realidade vivida por muitas pessoas.” O que incomoda na pretensa objetividade — e afasta o eleitor de programas e políticos tradicionais — é a falta de conexão emocional, vista como hipocrisia. Os “especialistas” enfrentam um dilema: manter a distância (e a pecha de “frios” e “arrogantes”) ou demonstrar paixão e engajar-se (dando razão aos críticos, por abandonarem a neutralidade). Paralisados, abrem espaço para o debate ser dominado pelo sentimento desconectado dos fatos, disseminado com a velocidade do meio digital.
“Os fenômenos conhecidos como ‘fake news’ e ‘pós-verdade’ são sintomas de discussões aceleradas a um ponto em que só opiniões superficiais são possíveis”, diz Davies. Ele acredita que não dá para separar razão de emoção na política, mas é possível estabelecer uma distinção entre velocidades e “defender a lentidão” do pensamento racional. Busca na guerra a imagem para descrever seu ideal. A inteligência que informa decisões militares não equivale ao conhecimento neutro da ciência, mas é sua melhor aproximação diante da urgência da batalha. Vencer, para o general, é mais importante que ter razão. Isso deveria valer, diz Davies, para acadêmicos, jornalistas e, claro, políticos. Primeiro, precisam resgatar a confiança perdida, “a capacidade de fazer promessas simples, realistas, que mudem a vida”. É isso que populistas de todos os matizes têm mostrado como se faz.
Fonte: “Época”, 28/09/2018