A verdade jurídica é una e definitiva: uma sentença transitada em julgado. A verdade histórica é múltipla e temporária: o fruto da narrativa dos historiadores. No Brasil, as comissões da verdade oscilam no espaço vazio que as separa, sem produzir as consequências práticas da primeira nem as luzes da segunda. A lista de perseguidos pela ditadura militar elaborada pela Comissão da Verdade da USP (Folha, 27/10) evidencia os equívocos desse projeto de fabricação de uma verdade estatal sobre nosso passado recente.
Olhos fixos num ponto indefinido, cabelos compridos, barba por fazer, número 9.442 da ficha do Dops “” eu, aos 18, estou na foto. Detido por algumas horas, duas ou três vezes, junto com outros estudantes, em manifestações contra o regime, recebo agora um selo oficial de herói da resistência. Não “desapareci”, obviamente, e não fui preso, torturado ou exilado. Devo, como tantos oportunistas, tentar converter esse selo em direito pecuniário, reivindicando uma bolsa-anistia que será paga por todos os brasileiros?
A “verdade administrativa” é uma violação da verdade histórica, pois nasce de métodos de generalização que apagam contextos e circunstâncias. Minha foto estampada na Folha não é de 1964, quando a perseguição da ditadura conduziu FHC ao exílio, nem de 1973, quando o estudante de Geologia Alexandre Vanucchi Leme “desapareceu” no DOI-Codi, mas de 1977. As torturas sistemáticas tinham sido abolidas no ano anterior, após os assassinatos no cárcere de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho. O regime ingressava em lento declínio. Qual é o sentido histórico de uma lista indiferenciada de 664 figuras uspianas reunidas sob o rótulo de “perseguidos”?
Naquele ano, ainda calouro, participei da redação do efêmero jornal estudantil “Avesso”. Na segunda ou terceira edição, enchemos a capa com uma das imagens icônicas de Mao Tsé-tung celebrizadas durante a Revolução Cultural chinesa. O contraste entre a capa e o conteúdo libertário dos textos compunha uma crítica irônica, mas feroz, à esquerda stalinista. O coronel Erasmo Dias, secretário estadual da Segurança Pública, apreendeu alguns exemplares e concedeu entrevista para acusar-nos de “maoísmo”. Havia divertimento gratuito, em meio à tensão.
Janice Theodoro, uma das coordenadoras da comissão da USP, é historiadora notável e, como seus colegas, certamente opera com as melhores intenções. Contudo, a lógica inflexível da “verdade administrativa” distorce a verdade histórica, coagulando narrativas míticas. Entre as oito fotos selecionadas pela Folha estão a minha e a de Eduardo Giannetti, que estudava economia, mas já ostentava um semblante de filósofo. A opção preferencial por colunistas do jornal revela as armadilhas da recepção midiática de uma “verdade” não filtrada pelas técnicas historiográficas.
As nossas comissões da verdade cumprem a função política de difundir a falsa percepção de que o Estado democrático ajusta as contas com a ditadura militar. Por essa via, oculta-se o mais relevante: desistimos de punir os crimes cometidos contra os direitos humanos. No Chile e na Argentina, os chefes dos regimes ditatoriais experimentaram sentenças de prisão: a verdade jurídica ergueu marcos nas memórias nacionais. No Brasil, pelo contrário, a Lei de Anistia promulgada pela ditadura sedimentou-se na forma de um pacto político sagrado, protegendo as autoridades militares que comandaram a máquina de repressão, bem como seus aliados e financiadores civis.
De Sarney a Dilma, passando por Collor, FHC e Lula, sucessivos governos inclinaram-se à Lei de Anistia, que impede o Judiciário de cumprir o dever de processar e sentenciar. Uma abdicação leva a outra: em nome da verdade, no lugar de interpretações históricas criteriosas, erguemos panteões de heróis da resistência. No fim, saímos mal na foto.
Fonte: Folha de S.Paulo, 01/11/2014.
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