Lula jamais protestou contra o monopólio da imprensa pelo governo cubano e nunca deu um passo à frente para pedir pelo direito à expressão dos dissidentes no Irã. Ele sempre ofereceu respaldo aos arautos da ideia de cerceamento da liberdade de imprensa no Brasil. Mas é incondicional quando se trata de Julian Assange: “Vamos protestar contra aqueles que censuraram o WikiLeaks. Vamos fazer manifestação, porque liberdade de imprensa não tem meia cara, liberdade de imprensa é total e absoluta.”
Assange é um estranho herói. No Brasil, o chefe do WikiLeaks converteu-se em ícone da turba de militantes fanáticos do “controle social da mídia” e de blogueiros chapa-branca, que operam como porta-vozes informais de Franklin Martins, o ministro da Verdade Oficial. Até mesmo os governos de Cuba e da Venezuela ensaiaram incensá-lo, antes de emergirem mensagens que os constrangem. Por que os inimigos da imprensa independente adotaram Assange como um dos seus?
A resposta tem duas partes. A primeira: o WikiLeaks não é imprensa — e, num sentido crucial, representa o avesso do jornalismo.
O WikiLeaks publica — ou ameaça publicar, o que dá no mesmo — tudo que cai nas suas mãos. Assange pretende atingir aquilo que julga serem “poderes malignos”. No caso de tais alvos, selecionados segundo critérios ideológicos pessoais, não reconhece nenhum direito à confidencialidade. Cinco grandes jornais (“The Guardian”, “El País”, “The New York Times”, “Le Monde” e “Der Spiegel”) emprestaram suas etiquetas e sua credibilidade à mais recente série de vazamentos. Nesse episódio, que é diferente dos documentos sobre a guerra no Afeganistão, os cinco veículos rompem um princípio venerável do jornalismo.
A imprensa não publica tudo que obtém. O jornalismo reconhece o direito à confidencialidade no intercâmbio normal de análises que circulam nas agências de Estado, nas instituições públicas e nas empresas. A ruptura do princípio constitui exceção, regulada pelo critério do interesse público. Os “Papéis do Pentágono” só foram expostos, em 1971, porque evidenciavam que o governo americano ludibriava sistematicamente a opinião pública, ao fornecer informações falsas sobre o envolvimento militar na Indochina. A mentira, a violação da legalidade, a corrupção não estão cobertas pelo direito à confidencialidade.
Interesse público é um conceito irredutível à noção vulgar de curiosidade pública. Na imensa massa dos vazamentos mais recentes, não há novidades verdadeiras. De fato, não existem notícias — exceto, claro, o escândalo que é o próprio vazamento. A leitura de uma mensagem na qual um diplomata descreve traços do caráter de um estadista pode satisfazer a nossa curiosidade, mas não atende ao critério do interesse público. O jornalismo reconhece na confidencialidade um direito democrático — isto é, um interesse público. O WikiLeaks confunde o interesse público com a vontade de Assange porque não se enxerga como participante do jogo democrático. É natural que tenha conquistado tantos admiradores entre os detratores da democracia.
Há, porém, algo mais que uma afinidade ideológica, de resto precária. A segunda parte da resposta: os inimigos da liberdade de imprensa torcem pelo esmagamento do WikiLeaks por uma ofensiva ilegal de Washington.
No Irã, na China ou em Cuba, um Assange sortudo passaria o resto de seus dias num cárcere. Nos EUA, não há leis que permitam condená-lo. As leis americanas sobre espionagem aplicam-se, talvez, ao soldado Bradley Manning, um técnico de informática, suposto agente original dos vazamentos. Não se aplicam ao veículo que decidiu publicá-los. A democracia é assim: na sua fragilidade aparente encontra-se a fonte de sua força.
O governo Obama estará traindo a democracia se sucumbir à tentação de perseguir Assange por meios ilegais. O WikiLeaks foi abandonado pelos parceiros que asseguravam suas operações na internet. Amazon, Visa, PayPal, Mastercard e American Express tomaram decisões empresariais legítimas ou cederam a pressões de Washington? A promotoria sueca solicita a extradição de Assange para responder a acusações de crimes sexuais. O sistema judiciário da Suécia age segundo as leis do país ou se rebaixa à condição de sucursal da vontade de Washington? Certo número de antiamericanos incorrigíveis assegura que, nos dois casos, a segunda hipótese é verdadeira. Como de costume, eles não têm indícios materiais para sustentar a acusação. Se estiverem certos, um escândalo devastador, de largas implicações, deixará na sombra toda a coleção de insignificantes revelações do WikiLeaks.
A bandeira da liberdade nunca é desmoralizada pelos que a desprezam, mas apenas pelos que juraram respeitá-la. Assange não representa a liberdade de imprensa ou de expressão, mas unicamente uma heresia anárquica da pós-modernidade. Contudo, nenhuma democracia tem o direito de violar a lei para destruir tal heresia. A mesma ferramenta que hoje calaria uma figura sem princípios servirá, amanhã, para suprimir a liberdade de expor novos Guantánamos e Abu Ghraibs.
“Vamos fazer manifestação, porque liberdade de imprensa não tem meia cara, liberdade de imprensa é total e absoluta.” Lula não teve essa ideia quando Hugo Chávez fechou a RCTV, nem quando os Castro negaram visto de viagem à blogueira Yoani Sánchez para lançar seu livro no Brasil. Não a teve quando José Sarney usou suas conexões privilegiadas no Judiciário para intimidar Alcinéa Cavalcante, uma blogueira do Amapá, ou para obter uma ordem de censura contra “O Estado de S. Paulo”. Ele quase não disfarça o desejo de presenciar uma ofensiva ilegal dos EUA contra o WikiLeaks. Sob o seu ponto de vista, isso provaria que todos são iguais — e que os inimigos da liberdade de imprensa estão certos.
Alguém notou um sorriso furtivo, o tom de escárnio com que o presidente pronunciou as palavras “total e absoluta”?
Fonte: O Globo, 23/12/2010
Primeiro,o Millenium apregoa leberdade de expressao, ai eu pergunto,liberdade para quem.
Nao se observa aqui um especialista ou articulista que tenha voz contraria ao site.
Bem em em relaçao ao Demetrio eh curioso que ele jamais protestou contra as distorçoes da F de Sao Paulo ou de Veja.E na apuraçao dos votos ele bradava furioso que o Serra ainda poderia virar.Demetrio seja coerente declare de que lado vc esta.Quanto ao artigo parei antes do fim, eh do demetrio nao da pra ler.
O melhor comentário que li sobre esse episódio. Na verdade, talvez tenha sido o único preciso em delimitar os fatos e conceitos.
Semanas depois Lula diz apoiar Assange não por sabero que é ou defender a liberdade, apoia por que ele ‘luta’ contra ‘os loiros de olhos azuis’ que Lula tanto odeia. Se o wikileaks relevasse algo realmente pesado do Irã, Venenezuela ou outro dos amigos do nosso presidente duvido que ele fosse tão firme.
O wikileaks é assumidademente um site hacker no sentido clássico de tornar públicas informações que não o são, fontes de informação como o wikileaks não se propõem a substituir a imprensa convencional. Não é verdade que o wikileaks publica tudo que tem, há uma seleção muitíssimo rigorosa. Você pode achar a seleção boa ou ruim, mas escreveu uma incorreção neste caso.
No caso dos vídeos da morte dos civis não há mentira do governo e ainda assim você defende que este vídeo deveria ficar oculto? É justamente este tipo de informação que a imprensa tradicional irá ocultar e um site como o wikileaks não.
Esta diferenciação entre curiosidade e interesse também não é tão simples. Há curiosidades obviamente injustas como o tipo que existe com a vida de celebridades, que devem ter direito a sua privacidade. É diferente de um governo que sobrevive tirando a força dinheiro das pessoas. Um governo não tem direito a trabalhar nesse regime de segredo, embora tenhamos nos acostumado com isso.
Excelente a explicação dada pelo prof. Demetrius para o caso Assange-Wikileaks! É muito importante fazer a diferença entre interesse público e curiosidade pública. Também gostei muito da advertência feita sobre os princípios que balizam a democracia e da observação sobre Lula, o mais cínico de quantos presidentes da República tivemos até agora.
Um abraço com votos de um bom 2011 para o prof. Demetrius e para o Instituto Millenium.
Maristela.