Antes de entrar no escritório da Special Fruit, empresa de Juazeiro (BA) especializada em exportação e importação de frutas, o visitante vê algumas imagens decorando as laterais da porta.
No lado direito, está uma carranca, a figura mítica que era colocada na proa das embarcações do Rio São Francisco para afastar maus espíritos e virou ícone do artesanato nacional.
No esquerdo, encontra-se uma serpente, animal ligado a diversos mitos na cultura oriental.
Ambas estão ali para trazer proteção e sorte. A união dos símbolos sintetiza a história não só daquela empresa, mas do fenômeno que gerou uma comunidade nipônica no Vale do São Francisco, em pleno sertão nordestino.
Em números, eles nem são tantos. O IBGE registra pouco mais de 5,8 mil pessoas autodeclaradas de “cor amarela” em Juazeiro, município baiano a 500 quilômetros de Salvador, e na vizinha pernambucana, Petrolina, a 800 quilômetros de Recife.
Quem passeia pelas cidades tampouco vê sinais tão evidentes do desembarque oriental. Não há um bairro que concentre essa população, que se dilui pelas cidades e zonas rurais da região.
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Mas a influência nipônica vai muito além das primeiras impressões. Os descendentes de japoneses trouxeram contribuições inestimáveis para a agricultura da região, especialmente no caso das frutas: participação decisiva para incentivar o plantio de uva e manga na região, estímulo para plantação da uva sem semente, desenvolvimento de estratégias de comercialização e experiência para dar o pontapé inicial nas exportações.
Uma revolução que ajudou a transformar o Vale do São Francisco no maior polo de fruticultura do Brasil, responsável por 98% das exportações de uva e 90% das vendas de manga para o exterior, segundo números da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e da Associação Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados (Abrafrutas).
No ano passado, cerca de R$ 440 milhões foram movimentados com as exportações dessas duas frutas na região. É como se a colônia japonesa tivesse tomado para si os versos cantados pela dupla Sá & Guarabyra em sua canção Sobradinho: “O sertão vai virar mar”. No caso, um mar de oportunidades.
Foi justamente a busca por essas oportunidades que trouxe os nipo-brasileiros para a região. “Houve um precursor, sr. Mutsuya Kishi, nos anos 60, e depois, na década de 70, algumas poucas famílias que se estabeleceram na região de maneira individual e voluntária”, conta o antropólogo uruguaio Martín Fabreau, com base nas pesquisas de seu doutorado na Universidade Federal de Pernambuco, detalhadas na tese Entre o Sakura e as Uvas. “Depois desse grupo, ocorreu a primeira chegada organizada de descendentes, em 1983, com a abertura de um escritório da antiga Cooperativa Agrícola de Cotia, a CAC, em Juazeiro.”
A CAC aportou no Vale do São Francisco com o objetivo de implantar o Projeto Curaçá. A proposta era fornecer pessoal qualificado para as obras de irrigação inseridas pelo governo em 28 lotes, onde seriam produzidas uvas e posteriormente mangas, frutas que se converteriam nas maiores culturas locais. “Os imigrantes foram os primeiros a comandar um projeto viável para o desenvolvimento da região”, diz Célia Sakurai, autora do livro Os Japoneses.
Uma das primeiras providências da CAC para incentivar o desenvolvimento do Vale do São Francisco, no início dos anos 80, foi levar para o Nordeste pequenos produtores, geralmente filhos de associados da cooperativa, que não dispunham mais de espaço para cultivar no interior de São Paulo.
Para a maioria desses pioneiros, o início foi bem complicado. A maioria deles não tinha experiência com agricultura irrigada. Além disso, não havia acomodação para todos.
Mas nada disso desanimou os empreendedores. Suemi Koshiyama, fundador da Special Fruit, foi um dos primeiros a aportar por lá, mudando-se de São Paulo para Juazeiro com a mulher e três filhos pequenos, em 1983. “Meu pai sempre foi um visionário. Nunca se acomodou”, afirma seu filho mais velho, Toshio Koshiyama, 39 anos, que hoje é diretor de produção do negócio.
Com o auxílio da CAC, a empresa teve um progresso lento, mas sólido. “O japonês não é tão agressivo como empreendedor. Ele é artesanal e mais focado na qualidade do que em fazer volume”, diz Toshio. Hoje, a Special Fruit produz 8 mil toneladas por ano de uva e 12 mil de manga, empregando 2 mil pessoas e exportando para dez países.
Outro pioneiro da região foi Takashi Takada, 75 anos, que hoje emprega 25 funcionários em sua fazenda, em Juazeiro. “Em São Paulo, eu não tinha meio metro de chão e plantava em terra arrendada. Então, eu disse: vou para a região do São Francisco”, diz.
Takada mostra, impresso em papel sulfite, um registro daqueles primeiros tempos. “No preparo do solo, a poeira comeu solta dia e noite”, diz um trecho. No meio do pó, ele precisou acampar em uma barraca improvisada. “Quando cheguei aqui, não havia nem casa ainda. Mas não quis ir para a cidade”, afirma. “Queria começar a arar a terra.” Takada nunca havia trabalhado com irrigação, nem conhecia o cultivo da uva sem semente.
Para aprender, foi preciso ter disciplina e persistência, traços comumente associados aos imigrantes japoneses.
O paranaense Edson Nakahara, técnico agrícola, foi convocado pela CAC para ser o gerente regional do projeto Curaçá em 1987. Em pouco tempo, já comprava seu próprio lote de terra. Após três anos em um cargo de gerência da cooperativa, decidiu sair do emprego, mas permanecer em Juazeiro.
No início, foi trabalhar com um amigo que comercializava produção agrícola local e tratou de inventar estratégias para aumentar as vendas. Uma delas foi comercializar frutas que não eram encontradas em São Paulo, como pitomba, tamarindo e jenipapo — a produção era enviada de avião para a capital paulista.
O sucesso foi tanto que Edson acabou montando o próprio escritório de exportação. Hoje, aos 60, também planta e colhe. O carro-chefe de sua empresa, a Frutecer, é a manga, com 130 hectares cultivados.
“Eu estava com 41 anos e fui um dos mais velhos selecionados pela CAC”, afirma Luiz Kazuhiko Fukagawa, hoje com 76 anos. Ele partiu do interior paulista para os lotes do projeto Curaçá com a mulher e três filhos. Mas, nos primeiros dois anos, foi preciso aguardar os parreirais frutificarem.
Enquanto isso, tinha de se virar com culturas mais rápidas, como melão e tomate. Filho de japoneses de Osaka, Fukagawa conta que a chegada maciça dos obstinados orientais assustou a população. “No jornal local, falava-se até mesmo em uma invasão amarela”, diz. A resistência inicial foi vencida quando os recém-chegados começaram a contratar e treinar mão de obra local.
Hoje aposentados, Fukagawa e a mulher, Zulmira, vivem em Petrolina. Ele atua como tradutor e intérprete em visitas de japoneses. Os filhos lançaram-se em outras carreiras. A mais velha, Suely Mary, 48, já foi dona de franquia de Kumon, método nipônico para aprimorar os estudos. Hoje toca outra franquia, a Ensina Mais Turma da Mônica.
“Os japoneses não valorizam tanto a vitória final. O caminho e o esforço têm mais valor”, diz o engenheiro mecânico Edis Matsumoto, 46, um paranaense neto de japoneses. Seu irmão Newton, formado em agronomia, mudou-se de São Paulo para o Nordeste no grupo de técnicos da CAC. “Na época, a família achou que era uma decisão maluca”, diz.
Mas, após alguns anos, Newton comprou alguns lotes de terra e convenceu o irmão a também ir para Petrolina. “Foi uma decisão difícil, já que tanto eu quanto a minha esposa tínhamos bons empregos.”
Mas ele pesou prós e contras e decidiu se aventurar até o Vale do São Francisco. “A mudança foi grande, mas hoje estamos totalmente adaptados”, diz Matsumoto. Com o nome de Fazenda Área Nova (FAN), o negócio dos Matsumoto abriga 44 hectares dedicados à uva e 37 à manga.
Edis também é presidente da pequena Cooperativa Agrícola Nova Aliança (Coana), que reúne cinco famílias de produtores de uva. “O imigrante japonês é como o herói de mangá Naruto. Ele não nasce com poderes especiais. Em vez disso, se esforça diante das derrotas e vai conquistando suas habilidades pouco a pouco.” O empreendedor se orgulha de suas estratégias de exportação. “Hoje, nossas uvas já chegam direto a supermercados da Inglaterra, sem atacadista ou atravessador”, afirma.
O agrônomo Roberto Daisaku Hirai, 58 anos, foi designado para o Projeto Curaçá em 1985, à frente de uma equipe que deveria viabilizar a exportação das uvas da região.
Já chegou sabendo que um dilema-chave era como manter a fruta em bom estado até alcançar ao destino. “O desafio era maior porque o despacho acontecia por via marítima. Por avião seria caro demais.”
Para viabilizar a primeira exportação, saiu em busca de câmaras frias, capazes de garantir a temperatura indicada para conservar as frutas em meio a um calor que pode chegar a 35ºC. O equipamento mais próximo ficava na cidade baiana de Senhor do Bonfim, a quase 130 quilômetros de Juazeiro, e pertencia a um matadouro. Hoje, todos os exportadores da região utilizam esse sistema de resfriamento.
Como muitos dos japoneses e descendentes que chegaram ao Vale do São Francisco nos anos 80, Hirai criou raízes na região. Virou consultor autônomo e, em 1992, passou a organizar a logística das exportações para 14 empresas de outra cooperativa que opera no local.
Hoje, o agrônomo empreendedor mantém, com um sócio, 173 hectares de terras com videiras. “Não existe no mundo lugar com condições tão favoráveis para produzir uva o ano todo”, diz. Seus três filhos nasceram e foram criados no Vale. “O melhor dessa história é que eles têm orgulho de serem nordestinos. E também japoneses.”
Fonte: “Pequenas Empresas & Grandes Negócios”