Quem é melhor? Mais sensível, inteligente ou racional? A nossa pouco lida Bíblia Sagrada afirma que Eva, a primeira mulher, foi produzida com uma costela de Adão que assim representa e, de imediato, (des)representa a humanidade. Mas outras mitologias dizem outras coisas. Caso contrário, o mundo seria diferente e os astecas, os havaianos, os marajoaras e uma multidão de outros povos estariam dando o seu testemunho sobre as novas tecnologias e haveria um i-Pad com aplicativos para ler nas mil e tantas línguas que sumiram do mapa, bem como intelectuais de tribos decepadas pelas espadas bíblicas e racionais, opinando sobre o WikiLeaks. Esse vazamento que o Lula (o nosso nunca antes visto maior quase ex-presidente) defende, esquecido de que ele próprio tentou expulsar o jornalista americano Larry Rohter, que ousou mencionar suas relações tumultuadas com um pai violento e o seu gosto pelo mero álcool que, ao lado de um outro tanto de coisas proibidas, ajuda segurar a vida e a imaginar o Paraíso. Esse lugar, como sugere Thomas Mann, onde o legítimo e o perverso estariam em perfeita sintonia.
Todo vazamento tem a ver com a dualidade entre “casa” e “rua”. Se os cargos públicos fossem absolutamente capazes de possuir os seus ocupantes, a conduta íntima seria inseparável da coletiva, os escândalos sumiriam. As reações ao WikiLeaks mostram que somos muitos, mesmo quando ocupamos cargos importantes e exclusivos e, um tanto além e fora do olhar mais trivial, que a informação não oficial e reveladora — os escândalos e fuxicos — mesmo num mundo globalizado ainda têm a função de exercer controle social e de balizar a moralidade. Tal como acontece nas aldeias.
Quem é mais honesto, os homens ou mais mulheres? Elas, dizia um amigo, conhecem mais e melhor a linha que separa o Bem do Mal; o que era enfaticamente negado pela maioria. As mulheres seriam sedutoras e, como Eva e Dalila, estariam sempre pensando em nos enganar. Deus nos deu a palavra, mas nos obliterou da leitura dos pensamentos uns dos outros. A vida coletiva só é possível porque ninguém, nem nós mesmos, lemos todos os nossos pensamentos, conforme descobriu Freud. Uma máquina de ler pensamentos destruiria o mundo tal como o conhecemos.
Tio Amâncio era conhecido por seus fracassos amorosos. Perto dos outros tios — Lino, Sivoca e Miroca — ele era uma espécie de contraponto. Enquanto o trio só falava de conquistas, ele só contava fracassos. Mas com que verve e energia ele falava deles e que lições ele tirava de cada episódio. Enquanto a frase final das conquistas era o “comer” — a consumação amorosa e o descarte da mulher —, para tio Amâncio o ato amoroso não era o fim, mas o começo. Foi ele quem me ensinou que “amor físico” era um equívoco de linguagem. Tio Amâncio considerava uma burrice separar sexo e amor pois, a rigor, não se podia distinguir um do outro e, ambos, de nenhum outro tipo de afeto, todos entrelaçados. Nesse campo, dizia ele, as mulheres tinham mais amplitude.
Num dado momento, e intuindo os tempos modernos, falou-se em quem governaria melhor. A coisa começou com a rotineira incapacidade racional das mulheres, mas logo chegou no enorme papel da intuição num país tão misturado e confuso como o Brasil. As mulheres ouvem mais, dizia tio Lino, e ouvir é básico para um bom governo. Daí passaram para quem seria mais duro com a corrupção e logo saíram da velha política para entrar num tema tão misterioso quanto fascinante e freudiano: quem tirava mais prazer do mundo, quem a ele mais se entregava e, nesse rumo, quem gozava mais, se o homem ou a mulher.
Tio Miroca, cuja frase — “Gozar é tudo” — revelava uma profunda sabedoria, lembrou uma lenda indiana. Um rei condenado pelos deuses por corrupção foi transformado em mulher. Numa floresta, casou-se com um camponês. Passado, entretanto, o tempo do ordálio, ele voltou à forma masculina e disse ao marido assustado: sou tua esposa e teu rei! Logo essa experiência reuniu curiosos, pois esse rei ambíguo poderia atestar quem desfrutava mais prazer. Era, disse ele, a mulher. O orgasmo masculino era mais visível, mas o da mulher poderia ocorrer em ondas ou maremotos; ou em pequenos surtos; em gritos entrecortados, como fazem as cuícas, em grandes e estremecedoras contorções, ou na leveza dos suspiros. Trata-se de um prazer sublime, completou tio Amâncio, tirando as palavras do mitológico soberano que encerrou seus dias como os vazamentos do Wiki- Leaks. Uns dizem que ele viveu e morreu numa profunda melancolia; outros, entretanto, garantem que os deuses atenderam ao seu desejo secreto e ele, mulher, voltou a viver com seu marido camponês. Enjaulados em corpos e papéis, preconceitos e experiências exclusivas e singulares, como saber a verdade verdadeira, exceto pela literatura que guarda no fundo dos livros toda a sabedoria humana?
Fonte: O Globo, 15/12/2010
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