“Hipocrisia”, dizia François de La Rochefoucauld, “é a homenagem que o vício presta à virtude.” E, se não lhe faltam homenagens no pacote de medidas para auxiliar o setor elétrico, a verdade é que a virtude propriamente dita não compareceu ao tributo.
É claro, pela formulação do pacote, que o governo não gostaria de ver inflação mais alta nem de registrar deterioração adicional em suas contas fiscais, dois objetivos sem dúvida virtuosos. O problema, como de hábito, é que, por trás da aparente retidão, as medidas adotadas somente disfarçam os problemas (ou os empurram com a barriga), sem atacar nenhuma de suas causas.
A redução a fórceps das tarifas de energia em 2013 e a seca deste ano produziram uma situação delicada no setor elétrico. Como as empresas distribuidoras de energia não conseguiram contratar 100% de suas necessidades no ano passado em razão da truculência governamental no trato com as geradoras, precisam agora comprar energia termelétrica, mais cara, no mercado à vista, pois a seca não permite o pleno funcionamento das hidrelétricas.
Têm, assim, comprado energia por preço mais alto do que são autorizadas a vendê-la, replicando, em certa medida, a mesma situação pela qual passa a Petrobras. Não há, porém, milagre de gestão que faça uma empresa, em qualquer ramo, ganhar dinheiro vendendo seu produto por um valor menor que custam seus insumos, e as distribuidoras não são exceção à regra.
Note-se que essa situação já ocorria desde o ano passado, quando os níveis dos reservatórios ainda se encontravam em condição razoável. A seca agravou o problema, mas está longe de ser a única causa. Tanto é que já em 2013 o governo foi obrigado a desembolsar R$ 8 bilhões para ressarcir as empresas (outros R$ 4 bilhões vieram defundos de reserva do setor, agora devidamente esvaziados).
Esse aumento de custos precisaria ser repassado ao consumidor. Por menos que gostemos de pagar mais por alguma coisa, o funcionamento de qualquer mercado minimamente eficiente requer que preços reflitam custos (tanto quando sobem como quando caem) e isso também vale, aliás, crucialmente, no que se refere à energia.
Caso tivéssemos a inflação (e principalmente suas expectativas) sob controle, essa reação levaria a uma aceleração provavelmente temporária, que poderia ser absorvida pelo intervalo de dois pontos percentuais ao redor da meta. Como, porém, desafiando as melho- res práticas, permitiu-se que o intervalo fosse usado para acomodar uma taxa de inflação persistentemente mais elevada, não há espaço para nenhum aumento de preços neste ano.
Há também, sem dúvida, receios quanto aos danos políticos que poderiam resultar da elevação de tarifas num ano eleitoral, também presentes na decisão de não reajustar adequadamente os preços de combustíveis.
Assim o governo acena com aumentos apenas em 2015, sendo, pois, forçado a auxiliar financeiramente as empresas já em 2014. No entanto, para evitar mostrar o dano em suas contas, decidiu aportar apenas R$ 4 bilhões (além dos R$ 9 bilhões já no Orçamento) para esse fim. Estima-se que R$ 8 bilhões adicionais seriam necessários, mas esses recursos seriam tomados pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), um ente privado, de modo que os empréstimos não apareceriam nas contas do setor público.
Considerando, contudo, que o orçamento para 2013 da CCEE foi da ordem de R$ 150 milhões, parece claro que qualquer empréstimo à empresa ou virá de bancos públicos ou será garantida pelo Tesou- ro (ou ambos). A contabilização do empréstimo fora do setor público é mera formalidade, que muda a aparência, mas não a natureza do subsídio.
Essa preocupação é louvável apenas pelo reconhecimento implícito da virtude; como toda instância de contabilidade criativa, porém, serve apenas para erodir a já escassa confiança em qualquer dado que provenha do governo.
Fonte: Folha de S. Paulo, 19/03/2014
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