A crise política em que se envolveu o senador Demóstenes Torres, agora sem partido, depois de se desfiliar do DEM para não ser expulso, está excitando a imaginação de uma ala dos governistas, que vê, na desgraça do oposicionista antigo paladino da ética na política, a negação de qualquer tipo de crítica aos famosos “malfeitos” dos aliados do governo, mesmo os mais antigos como o mensalão, que está para ser julgado pelo Supremo.
A coincidência dos dois fatos – a derrocada de Demóstenes e o julgamento do STF – seria uma boa notícia para os mensaleiros e leva a que esses governistas considerem que o enfraquecimento da oposição os fortalece no tribunal.
Nada mais absurdo. A tese geral de que um político que fazia o papel de ético se revelando um corrupto enfraquece as críticas oposicionistas à corrupção no governo só serve para os que querem igualar os contrários.
Se todos são ladrões, ninguém é ladrão, parecem raciocinar. Nada mais falso.
Os padrões éticos de fazer política continuarão valendo, e é por isso que o senador Demóstenes Torres corre o sério risco de perder seu mandato no Conselho de Ética do Senado.
É certo que o perderá apenas porque colecionou inimizades no papel de justiceiro que desempenhava com raro brilho, e agora receberá o troco dos adversários que um dia combateu, como os senadores Renan Calheiros e José Sarney.
Mas a base para a sua punição continuará sendo a conduta fora dos padrões considerados éticos e a quebra do decoro parlamentar ao mentir da Tribuna do Senado dizendo que não sabia o que todo mundo sabia, que Carlinhos Cachoeira era um contraventor.
Não importa que muitos outros, que quebraram o decoro ou mentiram, continuem incólumes no Congresso.
As gravações da Polícia Federal demonstram que Demóstenes tanto sabia o que seu amigo Carlinhos Cachoeira era que o flagraram aconselhando o bicheiro a não apoiar o projeto que criminalizava o jogo do bicho. ” E aí pega você”.
Cachoeira, que via mais longe, tranquilizou seu amigo: “Mas aí legaliza também, né?”
As circunstâncias estão levando o senador Demóstenes Torres para a cassação de seu mandato por caminhos tortos, mas razões corretas.
A tese específica de que foi o bicheiro Carlinhos Cachoeira quem armou a gravação que provocou a ira do então deputado federal Roberto Jefferson, originando sua denúncia sobre o mensalão, não justifica, como querem alguns, o enfraquecimento das denúncias contra os mensaleiros, em especial contra o ex-ministro José Dirceu, acusado pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel, de ser o chefe da quadrilha.
As imagens conseguidas pela revista “Veja” em que um diretor dos Correios, Maurício Marinho, recebe um suborno de R$ 3 mil, divulgadas no “Jornal Nacional” e que se tornaram um ícone do combate à corrupção, teriam sido gravadas, segundo a nova versão divulgada pelo jornalismo oficial, a mando do bicheiro Carlinhos Cachoeira para vingar seu amigo Demóstenes Torres.
Nessa versão novinha em folha, que surge agora às vésperas do julgamento do mensalão, para tentar misturar alhos com bugalhos, o senador goiano teria pleiteado ser nomeado secretário nacional de Justiça e foi vetado pelo então todo-poderoso chefe da Casa Civil José Dirceu.
A represália teria como objetivo criar um problema para o PTB, que indicara o diretor dos Correios, e provocar uma crise na base aliada.
Mas o que essa intrigalhada toda tem a ver com o mensalão?
Já se sabia há muito tempo que o vídeo da propina provocou a reação do presidente do PTB contra José Dirceu porque Jefferson considerou que ele havia sido feito a mando do PT para tirar do PTB uma fatia de poder dos Correios, a mesma disputa de bastidores, aliás, que se desenrola hoje entre o PT e partidos da base.
Se o vídeo foi feito por um empresário ligado ao Partido dos Trabalhadores, como se acreditava até recentemente, ou a mando do bicheiro Carlinhos Cachoeira, não importa.
O fato é que, sentindo-se traído por Dirceu, o então deputado Roberto Jefferson disparou sua metralhadora giratória, revelando o maior escândalo de corrupção política registrado no país nos anos recentes.
Não existisse o esquema, a reação de Roberto Jefferson seria outra, mas como existia – de acordo com o procurador-geral da República e o relator do processo no Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa – ele se vingou revelando o plano que fora concebido dentro da Casa Civil da Presidência da República.
Aliás, a existência desse mensalão já fora denunciada ao próprio presidente Lula pelo então governador de Goiás, Marconi Perillo.
Portanto, a nova versão em nada muda a essência da questão: o mensalão existiu e estará sendo julgado em breve pelo Supremo Tribunal Federal com base no que foi apurado em mais de sete anos de tramitação do processo.
Já é hora de uma decisão final da Justiça.
Fonte: O Globo, 04/04/2012
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