É bem provável que a maioria das sociedades humanas conceba suas trajetórias na forma de um pêndulo – que vai-volta – do que como uma reta, uma curva ou o familiar ziguezague com o qual exprimimos os movimentos das bolsas de valores, das taxas de desemprego, criminalidade, educação, etc…
A expressão gráfica é o símbolo de “atraso” ou “progresso”, esses valores que, a partir do século 18, constituem a cosmologia ocidental. Subíamos ou descíamos numa linha redutora de um enorme número de variáveis. Tudo é economia ou política. A vida com sua infinita riqueza é lida como tendo épocas, estações e ciclos mais ou menos individualizados e direcionados para o alto: para o “civilizado” e para cima. Seria preciso um ensaio acadêmico – que não cabe em jornais – para elaborar esse ponto.
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Falei sobre isso com meu amigo Mario Batalha, fiscal do consumo aposentado, e ele, rabugento e negativista, surpreendeu-me concordando.
– Não há apenas continuidade. O que existe é um pêndulo em conflito ou harmonia com uma linha. Há mais idas e vindas, guerra e paz, do que harmonia e progresso continuado. A prova é como a tecnocracia promove o fim do mundo.
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Calei-me e falei de um assunto que nos une: os netos. Troquei o enfoque impessoal pela lente familística.
– Querido amigo – disse sorrindo um “velho” Batalha –, ontem Olivia, minha neta mais velha, voltou do Amazonas onde serviu numa unidade de fronteira do Exército como médica por quase um ano. Ela, tal como você, viu as muitas línguas e costumes que definem a vida dos “índios” que servem no nosso Exército.
Mal posso descrever – continuou – a emoção ao abraçá-la e beijar o seu rosto de mulher feita, profissional da medicina que a torna uma curadora ao lado do marido que, também médico, seguiu nessa viajem. Eu via a mulher, mas não esqueci a menininha e essa fusão de lembranças – a que foi e a que voltava – me comoveu. Ela foi a primeira pessoa deste mundo que me chamou de vovô. E, sem saber, iniciou-me nesse clube abençoado dos vencedores leais às gerações que fundaram. Ela partiu e voltou mais bela, mais madura, mais sábia, mais sofrida. O pêndulo da ida-vinda se consumava e eu, apesar de todo o meu machismo de homem que não chora, chorei como só faz um fiscal aposentado.
Eis uma das graças de Deus!
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Minutos depois chegou Manuel Palavra, jornalista aposentado, obrigando o grupo a mudar de assunto:
– Confesso minha preocupação com esse nosso Brasil semisuicida. Diante de tanta dissonância, ando com uma maluquice na cabeça. Tenho imaginado como seria uma invasão do Brasil!
– Não seremos invadidos. Deixe a paranoia para o nosso antropólogo cronista…
– Certo, mas e se houver uma guerra? Vamos supor que os “azuis” ou os “vermelhos” tomem o nosso rico centro-oeste com o seu agro que é tudo. O que faremos?
– Temos tropas capazes de repelir qualquer ataque ao nosso sistema geopolítico, falou Luizinho, 78 anos, safenado, coronel de Infantaria da reserva com forte voz de comando.
– O que preocupa é a declaração de guerra. Como é que vamos declarar guerra ao inimigo? Insistiu o jornalista aposentado, realizando um furo na nossa conversa sonolenta.
– Ora, disse eu, a Declaração de Guerra caberá aos poderes da República – o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
– Você acha que haverá consenso? Como concordar se a norma é discordar e deixar o Brasil entregue aos ratos? Veja a reforma da Previdência. Faz tempo anunciada e adiada como um fim de mundo até que o fim do mundo chegou e, mesmo assim, ainda há quem não a aceite?
De fato – continuou o ex-jornalista – as medidas contra o crime, apresentadas pelo ministro Moro, já despertam suspeitas e sofrem reparos. Já tem gente contra, mesmo sem estudá-las.
– É o tal do não li e não gostei, como ocorre com seus livros. Disse o jovem professor Madeira, olhando para mim.
– Haverá polarização mesmo numa guerra? Lutar contra a tomada do Brasil seria de direita ou de esquerda? Ou seria mais um complô para manter um inocente Lula na cadeia? Insistia Manuel Palavra, causando um nervosismo desagradável.
Fiquei tonto.
Realmente, quanto tempo o nosso Congresso precisaria para fechar uma declaração de guerra? E se algum ministro do Supremo pedisse vista do processo?
– Até obter um impossível consenso de uma elite marcada pela patologia da fissão, o Brasil teria sido invadido e tomado, finalizei.
Nossos olhares bestificados se encontraram com a descoberta de que o maior inimigo do Brasil éramos nós mesmos. É essa rancorosa queda de braço num mesmo corpo que tem mantido o gigante adormecido tendo os pesadelos de idas e vindas.
Fonte: “Estadão”, 13/02/2019