Nenhuma cidade brasileira é tão grande, nem tão cosmopolita, nem tão complexa para administrar como São Paulo de Piratininga. Seu eleitor se deixa levar pela emoção como qualquer outro, mas mais do que qualquer outro presta atenção no fato biológico de que a mão que vota é a mesma que põe no bolso para guardar ou sacar dinheiro e também a que usa para cumprimentar, persignar-se, pedir ou dar. Vai ver que é por isso que seu comportamento é tão sutilmente peculiar que nem os mais habilidosos políticos conseguem entendê-lo por inteiro. Para tanto nem precisa ter nascido aqui, como Jânio Quadros, de Mato Grosso, seu alcaide no começo e no fim da carreira. Há, contudo, que lhe dar atenção, até mimá-la um pouco. Raros entenderam isso como Jânio, um dos poucos que partiram dela para um voo federal, embora de galinha. O mais frequente dos adversários de Jânio, Adhemar de Barros, por exemplo, ganhou e perdeu eleições para prefeito e governador e nunca governou o País.
Nunca se deixando conduzir, mesmo quando não conduz, conforme determina o dístico de suas armas e barões assinalados, São Paulo comporta-se de forma singular em relação ao restante do Brasil. Também tem certa predileção irônica pela contrariedade. Quando os idiotas da objetividade concluíram em conjunto que seu eleitorado era mais conservador do que a média nacional, talvez pela prosperidade, a maior cidade brasileira deu o triunfo a uma sertaneja pobre, solidária, desvalida e desprovida de encantos físicos, Luíza Erundina de Sousa, contra um paulistano milionário e oportunista, Paulo Maluf, 22 anos antes de Dilma Rousseff chegar à Presidência pelo voto. Repetiu a dose com uma sexóloga da alta sociedade, militante do Partido dos Trabalhadores (PT), Marta Suplicy. Da mesma forma como, quatro anos depois, não lhe permitiu a reeleição, sufragando o adversário, oriundo do bairro proletário da Mooca, José Serra, no mesmo dia em que pesquisa de opinião registrava o apoio da maioria do eleitorado à prefeita como gestora. Vai entender! Quatro anos depois, um militante anônimo praticamente sem currículo se reelegeu para o cargo que ocupou com a vacância do titular (que o deixou para ser governador), derrotando um ex-governador e de novo a ex-prefeita.
São Paulo, a comoção da vida do poeta Mário de Andrade, é uma caixinha de surpresas e nada indica que tudo vai ser diferente na temporada que se está abrindo para escolher o sucessor de Gilberto Kassab (PSD). Do topo de seus 80% de popularidade à saída do segundo governo presidencial, o pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva, de seu QG em São Bernardo do Campo, resolveu ungir candidato próprio e estranho à militância petista na capital paulista para nele erigir as bases de um projeto político unívoco, a começar pela conquista da Prefeitura e continuar pela subida das colinas do Morumbi. Recorreu até à comiseração pelo diagnóstico de um câncer na laringe para retirar a renitente Suplicy do caminho e ungir seu ex-ministro da Educação Fernando Haddad.
Durante cinco meses, com Lula preso ao hospital pelos achaques do tumor, o candidato único do PT desfilou pelo Planalto de Piratininga como único herdeiro do Padim Padre Cícero da periferia do Ó, mas até agora não conseguiu ultrapassar humilhantes 3% nas pesquisas de intenção de voto. E isso com o PSDB fazendo de tudo para asfaltar seu caminho para o Viaduto do Chá: três secretários municipais e um deputado estadual se prepararam por um tempo interminável para disputar uma prévia que, no final, foi vencida por José Serra. Vencida? Bah! Os tucanos levaram cinco meses para entender o óbvio: que a intenção do governo federal e de Lula era federalizar a campanha municipal em São Paulo e só engoliram o óbvio depois de verem a boiada de todos indo definitivamente para o brejo sem um candidato apoiado por um prefeito com R$ 7 bilhões em caixa para tornar a cidade um canteiro de obras em ano eleitoral. Aí, apelaram para a velha regra-três. E lá veio Serra ganhar a prévia adiada por 15 dias pela margem de 2,1% de votos a mais que os dados a José Aníbal e a Ricardo Tripoli. Se alguém ainda tiver alguma dúvida quanto ao que significa a expressão “vitória de Pirro”, está convidado a perscrutar o ânimo dos vencedores daquela memorável “prova da democracia interna do PSDB”. Enquanto o velho mito da cara nova patina nos 3%, o melhor candidato que a oposição ao governo federal tem para encarnar o “comigo não, violão” da orgulhosa São Paulo contra os planos de dominação do PT ostenta esse triunfo esquálido de dar dó.
Ah, mas nós não perdemos por esperar! Este jornal já deu em manchete que Brasília descerá em peso para engordar os índices indigentes do professor Haddad. E ansiamos pela recepção espetacular que a Vila Carrão dará a Gleisi Hofmann, a virada do eleitorado do Jardim Ângela quando souber em quem votará Gilberto Carvalho e, sobretudo, o esmagamento das pretensões tucanas pela imensa popularidade desfrutada por Ideli Salvatti na Vila Brasilândia. Quem duvida que será um deus nos acuda?
Não que Serra não esteja cuidando de ajudar o adversário: não chamou de “papelzinho” o recipiente de sua promessa de que não renunciaria à Prefeitura para disputar o Estado ou a Presidência dois anos depois? A vitória do vice Kassab após a quebra de promessa desidrata um pouco as esperanças de quem pensa que esse deslize do ex-governador lhe pode ser fatal nas pretensões este ano. É um erro de cálculo que se assemelha talvez ao de Lula, que faltou à aula de História em que teria aprendido que seu adversário-mor teve maioria dos votos paulistanos contra ele próprio em 2002, Marta em 2004, Mercadante em 2006 e Dilma em 2010. Como advertiu Garrincha ao técnico Feola em 1958, é bom consultar os russos antes de contar com os próprio dribles. Isso vale também para o tucanato em flor, esquecido das noções de aritmética na prévia.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 11/04/2012
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